Há dias prometo esse post, mas precisava de um tempo para que a poeira baixasse e a reflexão me fizesse ser honesta e sensata nas minhas avaliações. Apesar de valorizar imensamente as emoções, em especial quando se referem a impressões sobre lugares e paladares, acho que o restaurante 1884 em Godoy Cruz, Mendoza, na Argentina, merece essa consideração.
Com a viagem marcada, tratamos de tomar algumas providências como estudar as principais atrações do local e fazer reservas nos restaurantes mais famosos e indicados.
Estando em Mendoza, eu não deixaria de conhecer o restaurante do chef Francis Mallmann, uma vez que o acho, no mínimo, sui generis a cozinha regional argentina e, mais que isso, simpatizo enormemente com os “cozinheiros-celebridades” que valorizam (às vezes até em demasia) suas raízes culinárias.
Para quem não sabe quem é Mallmann sugiro assistir a um dos documentários da série Chef’s Table que a Netflix lançou este ano. Dá para ter uma ideia apenas pelo trailer do quão surpreendente pode ser o restaurante desse argentino, um tanto excêntrico e pra lá de ousado.
Chegamos pouco antes da hora agendada e, para esperar nossos amigos que ainda estavam a caminho, fizemos uma visita de reconhecimento do lugar.
O restaurante se chama 1884 porque esse foi o ano da construção da sede da vinícola Escorihuela Gascón, que sofreu um incêndio tendo ficado em ruínas. Foi então resgatada por Francis Mallmann que a transformou num charmoso e elegantérrimo restaurante mendocino, muito procurado por turistas e críticos de gastronomia. Todo taxista de Mendoza, mesmo sem entender o que dizem os passageiros estrangeiros, saberá conduzi-los ao estabelecimento de Mallmann.
Chamam atenção a decoração refinada e aconchegante do local, o que é plenamente favorecido pela iluminação indireta e o aroma da brasa e das cinzas que percorre o ambiente uma vez que é um atrativo do restaurante o preparo das carnes de frango e cordeiro à moda.
Um grande braseiro redondo fica na área externa do restaurante próximo às mesas do jardim. Nele é feito o churrasco, mas o que é atraente é como ficam penduradas as carnes para que sofram a ação da temperatura e da fumaça. Isso lhes rende um sabor diferenciado de tudo o que se possa ter comido até então.
1884, o restaurante de Francis Mallmann
O atendimento do 1884 é feito por jovens estudantes de hospitalidade e gastronomia. Todos muito descolados, cheios de tatuagens, com cortes de cabelos e barba bem pouco convencionais, assim como seus acessórios: piercings, óculos e brincos.
Embora não seja recomendado o uso desses elementos chamativos pelas tradicionais e austeras escolas de gastronomia pelo mundo, nas escolas de marketing, com certeza, compõem o plano estratégico para atrair clientes para esse tipo de restaurante que vende profissionalismo aliado a ousadia.
Até que tivessem sido escolhidos os pratos e o vinho, a brigada demonstrou amplo conhecimento dos pratos, desembaraço para explicar os ingredientes que compunham os preparos, sem, no entanto, sugerir nada, nem esboçar paciência ou impaciência conosco, os comensais. Mantiveram-se impávidos. A meu ver falta simpatia ou empatia com o cliente, deixando uma ponta de arrogância no ar do atendimento. Apesar do padrão internacional, a brigada falava espanhol. Ponto.
Nem mesmo o vinho para a harmonização nos foi sugerido. É bom dizer, no entanto, que, apenas diante da minha menção de uma garrafa com determinadas características, entre as quais o preço (eu pedi que não fosse alto demais), o maitre sommelier nos indicou um blend, como eles chamam por lá, ou assemblage, como chamamos por aqui, de malbec, cabernet sauvignon, syrah, merlot e petit verdot para acompanhar os pratos. Nada barato, mas delicioso. Tomamos um gran vin Cuvelier Los Andes, safra 2010.
Para um cliente desavisado, o atendimento pode ser considerado um pouco hostil. A carta de vinhos é enorme, são várias páginas de muitos rótulos, safras e uvas. Ouso dizer que a maior parte dos visitantes da casa não deve ser formada por profundos conhecedores de enologia. O que me faz crer que a postura dos garçons e do maitre não os teria ajudado. O que não significa que não sejam preparados para o que fazem, nem que sejam pouco treinados para fazer boas vendas porque sabem conduzir o cliente a pagar por uma garrafa sempre um pouco além do que gostariam.
Estávamos em cinco pessoas e diante da exigência de consumirmos pratos individualmente, sem que pudéssemos reparti-los, pedimos cinco pratos. Sobrou comida, claro! Isso não é bom. Caracteriza um descuido do restaurante com o meio ambiente porque comida que vai para o lixo é comida desperdiçada. Dá impressão que é só o lucro que importa, ou seja, se o cliente estiver disposto a pagar, não é preciso informá-lo que os pratos são grandes, mesmo que ele tenha perguntado, como foi o nosso caso.
As entradas surpreenderam ao paladar. Pedimos empanaditas com salada e salada com queijo de cabra. Ambas muito saborosas, com destaque para o gosto levemente queimado das empanadas. Esse fundinho queimado dos preparos é, de fato, muito aconchegante e dá uma sensação de casa quentinha e acolhedora quando degustamos.
Quatro dos pratos pedidos foram costeletas de “corderos” feitas na brasa, em grandes espetos, algo um tanto curioso para quem não é acostumado a esse tipo de cocção. O cordeiro assado compunha a sugestão do dia. Esse prato é considerado a principal prata da casa, tanto que todos ficamos muito entusiasmados com ele.
O outro dos cinco pratos foi um “chivito” (cabrito), este cozido por longas horas na panela em vinho malbec. Servido com batatas, tinha um tempero incrível, realmente memorável. Para voltar e repetir ou guardar para sempre nas melhores lembranças gustativas.
Algo interessante é o serviço de água com e sem gás. Você paga um determinado valor e seu copo será sempre reabastecido.
Aqui faço algumas observações e ressalvas sobre como foi o nosso atendimento no 1884. A partir de uma determinada hora, logo que foi servido o prato principal, nossos copos tanto de água quanto de vinho deixaram de ser enchidos. Fomos esquecidos. Assim como também esqueceram de colocar alguma iluminação como uma velinha ou abajur na nossa mesa. Eu não gosto de comer no escuro sem ver o que como, isso não é nada confortável.
Quando tentamos ter a atenção dos garçons, a menos que subíssemos na mesa e dançássemos kan kan, havíamos nos tornamos de uma hora para outra completamente transparentes aos olhos da brigada. Decepcionante para o cliente num lugar como esse.
Depois de decidirmos não pedir sobremesa, solicitamos o café e a conta.
O lugar não aceita reais, nem dólares. Somente pesos e cartão de crédito. Também não tem maquininha que vai à mesa. Os pagadores com cartão precisam dirigir-se ao caixa para quitar suas dívidas.
Perguntei em algum momento pelo chef Francis Mallamann. Gostaria de conhecê-lo pessoalmente. Segundo Maria, a hostess da casa, ele não aparecia por lá há cerca de um mês. Pena!
Quando se trata de hospitalidade, a experiência de ir a um restaurante como o 1884 gera expectativa até mesmo aos mais desinformados clientes. É um estabelecimento reconhecido, afamado, com referências em guias turísticos com legendas que levam vários cifrões. E, pode acreditar, a conta faz jus aos cifrões. Não se espera pouco, portanto. Quem vai quer ser surpreendido. Para isso, se apronta e se apruma, como nós fizemos. O esquecimento e o descuido da brigada do restaurante é imperdoável.
O restaurante é bonito, a decoração elegante, a comida tem qualidade, a carta de vinhos extensa e valiosa. O atendimento, contudo, vai da euforia à depressão.
Não gosto de dar nota, só opinião, e a minha é que faltou um olhar mais atento do todo no dia em que estivemos lá. E ainda completaria: menos marketing feito de carinhas jovens e descoladas e mais atenção ao cliente de um jeito simples, humano e menos técnico, fariam a experiência inesquecível para os cinco sentidos.
Em outra oportunidade, quem sabe seja diferente.
Serviço:
1884 Restaurante Francis Mallmann
Aberto todos os dias a partir das 20h30.
Belgrano 1188 – Godoy Cruz
Mendoza – Argentina
Tel: 261 424-3336
261 424-2698
http://1884restaurante.com.ar/
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Valeu a espera, Claudia. Post impecável. Saboreei e me incomodei junto contigo. Abraço