Especial para o blog Aqui se Fala Português
Minha amiga Cris Pacino, que mora em Madri, me fez um convite muito honroso. Convidou-me para escrever um texto de tema livre, mas com algum foco cultural para o blog dela que se chama Aqui se fala português. Um espaço para reflexão em português, como sua própria descrição. Adorável!
Em primeira mão para os leitores do Blog da Gavioli, o texto que será publicado ainda em fevereiro. Na próxima terça ou quarta-feira. Obrigada, Cris!! Adorei seu convite.
A feira na hora da xepa
Quase todo mundo no Brasil, especialmente, depois de duas edições da novela Dona Xepa, uma nos anos 70, estrelada pela atriz Iara Côrtes, na rede Globo, e um remake feito há alguns anos pela TV Record, sabe o que é xepa.
Para os que querem definições e significados, vale acessar o link: http://www.significados.com.br/xepa/
Na cidade de São Paulo é uma prática dos feirantes quando vai chegando o fim da jornada do dia, ou seja, perto de uma e meia da tarde, reduzir drasticamente os preços dos produtos que não foram vendidos até aquela hora. Isso é a xepa.
Em especial, fazem isso com os hortifruti. Verduras, legumes e frutas são ofertados por menos da metade do preço praticado no início da feira, logo pela manhã. Isso é tão comum que as plaquinhas com os preços têm duas versões: na frontal, o valor original, mais alto; do lado oposto, ou seja, nas costas do papelão, o preço a ser praticado na xepa.
Como bem poderíamos concluir, esses produtos são os restos que ficaram das escolhas feitas pelos fregueses mais exigentes e que estiveram na feira em busca do frescor e dos ingredientes mais cobiçados para irem para a panela ou à mesa. Mas nem sempre isso é uma verdade.
Faz tempo que em São Paulo, os melhores produtos não estão na feiras. Os feirantes já não são necessariamente produtores ou representantes de produtores que se dedicam a escolher o que há de melhor para ofertar aos seus clientes mais fieis e que, pela qualidade, aceitam pagar mais caro.
Na maior parte das vezes, a xepa é só a desova do mesmo legume, digo, que tem a mesma qualidade, que foi vendido antes. Só que com preço menor. Claro que o pepino e a berinjela do fim da feira podem ter sido mais manuseados, mas nem sempre. O lance é que o comerciante não quer carregar tudo de volta para tentar vender no dia seguinte. Ele sabe que o transporte prejudica a mercadoria. Devido às condições do deslocamento e graças à temperatura e ao clima, bem como o envelhecimento do produto o torna menos atrativo, então é melhor vender logo. É nessa situação que fica bem claro como funciona a lei da oferta e procura. Preços mais baixos atraem mais compradores.
É romântico pensar na feira livre e numa cesta de vime prestes a ser preenchida por hortifrutigranjeiros logo que surgem os primeiros raios do sol ao amanhecer. Mas do jeito que a nossa agricultura vem sendo desenvolvida em padrões industriais e tecnológicos, produto fresco só se for plantado no quintal… Seu apartamento tem quintal???
Desse jeito vai dar a impressão de que sou contra as feiras e os feirantes. Nada disso, ao contrário, eu adoro ir à feira. Acho uma delícia. Meu passado me condena a amar as feiras. Gosto até mesmo do barulho, que é quase ensurdecedor. Tanta gente gritando a oferecer os mais lindos figos, abóboras, laranjas, pêssegos, melancias…
Aqui em São Paulo, frequentei por muitos anos a feira da rua Mourato Coelho, na Vila Madalena, aos sábados. Eu criei uma especial predileção por uma feirante, moça jovem, que anunciava os pacotinhos embalados de legumes e tubérculos diversos com uma voz quase grave e muito sonora:
– Vem, freguesa, agora é três por dois reais, três pacotes por dois reais! Vamo, freguesa, é três por dois!
Eu a ouço ofertando e adoro! Um dia contei pra ela o quanto eu a adorava anunciando os legumes. A mulher simplesmente corou. Tímida. Ela é tímida. Ah! E sabe, sua voz é bem feminina, fina e delicada.
Agora moro na Vila Buarque, um lugar charmoso entre Higienópolis e Santa Cecília. Não é que a banca dessa moça também vem à feira do domingo de Santa Cecília?! É muita sorte a minha.
Outras muitas coisas me fazem amar feiras. Mas o assunto é xepa que na hora que rola é uma zoeira total. As pessoas chegam a se atropelar para comprar. E é bom que tenham dinheiro trocado, de preferência, o que facilita a relação entre comerciante e freguês. Mas se não tiver, tudo bem. Feirante é por natureza generoso. Se não for, não dura no ramo.
Eu detesto os mesquinhos que não concedem o chorinho de uma dúzia de treze laranjas. Aprendi isso quando ainda nem sabia ler lá em Itu, nas feiras que ia na Vila Nova, em frente ao cemitério e ao lado da fábrica São Pedro. Como assim, não tem dúzia de treze??
Uma curiosidade das feiras de São Paulo é o jeito como os vendedores abordam as pessoas para que comprem. O vendedor de limão, o de maracujá ou de alho, todos ensacados, encontra com você dez vezes e lhe dirige a mesma expressão. Sem sequer mudar o tom. Os que vendem frango e miúdos de boi estão sempre insinuando algo com duplo sentido, são de uma sensualidade grotesca, mas bem animada se você entender que não é desrespeito, é um jeito de lidar com a lida.
Os peixeiros “enfiam a faca”, como são careiros!
Há ainda os fruteiros. Esses cortam uma
lapa tenra e saborosa das frutas e lhe dão para degustar. Impossível não se render e comprar. Fica até feio. Só que quando você chega em casa nem sempre a fruta tem aquele sabor e textura… Sei lá porquê, mas desconfio.
Não falei do batateiro, do vendedor de ovos, da banca da banana, das de tomate e dos temperos. E a de coco ralado na hora. Cada qual para um apetite.
Na xepa, quase todo mundo é igual. Só os que vendem produtos menos perecíveis não precisam se expor tanto. Os demais querem mesmo por a boca no trombone para anunciar a couve-flor, o agrião e a escarola.
Uma experiência e tanto. Daqui a pouco, eu vou!