Convidado Especial: Luigi Marnoto
Hoje é quinta, dia reservado aos convidados especiais do Blog da Gavioli. Para minha inenarrável satisfação quem assina o texto de hoje é um amigo desses que a gente ama à primeira vista.
Luigi Marnoto é o nome adotado e assumido, já que um dia foi apelido ainda na barriga da mãe dele, mas de batismo mesmo é Luiz Fernando. Só que sempre foi Luigi. Um nobre por natureza, que cozinha, conta causos, toca violão e é sempre bem vindo numa roda de amigos! Ele que só se mistura à patuleia porque tem a graça e a desenvoltura dos que sabem rir de si mesmos. Tímido, a seriedade ele faz questão de esconder. Até porque os que se levam a sério demais são chatos (e engraçados) por princípio. O Luigi não é chato, é ranzinza, aristocrático. Uma criatura adorável.
Trabalhamos juntos na Amcham numa fase conturbada e cheia de mudanças, mas a gente conseguia levar tudo com tanta graça que parecíamos mesmo felizes. A hora sagrada do almoço era esperada e planejada variando os tipos de comida, um dia italiana, outro portuguesa, alemã ou árabe. Foi na companhia dele que passei a notar e apreciar as sutilezas da boa mesa. Restaurantes ainda que baratos podem preservar a qualidade e não devem disso abrir mão. Estabelecimento que serve óleo e não azeite de oliva não vale a pena frequentar… Couvert de pão com margarina nem pensar! E vai por aí.
Graças ao tempo do nosso convívio diário, já não sei se é do Groucho Marx ou do Luigi a frase: “Eu bebo para fazer as outras pessoas interessantes”. Sei que guardo histórias e estórias, muita risada, algumas boas bebedeiras, profunda admiração e, claro, quilos a mais porque a balança registra sem pena os prazeres consumidos à mesa.
O Luigi é um nobre que frequenta a cozinha por vocação.
Vocare
Por que escolher a profissão de cozinheiro? Esta é uma das perguntas mais frequentes feitas a um profissional de cozinha. Não à toa, era a primeira pergunta que eu fazia aos aspirantes a um emprego no restaurante no qual eu comandei as caçarolas há uns anos. As respostas nunca escaparam dos lugares comuns – paixão, amor, busca por aromas de infância etc. Estas melhores que outras aberrações do tipo “ah, prestei para administração e gastronomia, não passei em administração, daí…”.
A verdade é que boa parte desses aspirantes buscavam mesmo era o propagado glamour que, de uns tempos pra cá, associou-se à figura do chef. Saídos das faculdades de gastronomia que se espalharam por aqui (algumas muito boas, diga-se), habituados à infraestrutura que a maioria delas tem, não tinham a mais remota ideia do que é o dia a dia numa cozinha de verdade (com raríssimas exceções, sempre deficitárias de equipamentos de última geração). Uns, os mais tenazes, suportavam por pouco mais de uma semana. Outros, quando não fugiam no meio do expediente, abriam o bico em dois dias.
Uma cozinha profissional pode ter de tudo – gritos, esgares de ódio, cortes, queimaduras, gargalhadas, vivas de missão cumprida, encochadas involuntárias (ou não), barulho infernal, frustração e até fome –, menos glamour. Pois imagine-se num ambiente, geralmente muito apertado, onde a temperatura invariavelmente passa dos 30°, os prazos de entrega não podem passar de alguns minutos e uma quebra na engrenagem de produção pode comprometer todo o resultado. E lembre-se, no meio de todo esse turbilhão, seus coleguinhas de trabalho geralmente estão portando “armas” pontiagudas e cortantes. Glamour?
Assim, nunca ouvi dos aspirantes a chef a única resposta razoável à pergunta feita lá no primeiro parágrafo: vocação.
A palavra vem do verbo latino voco, vocare, e quer dizer chamado.
Dia desses me perguntaram quando ouvi e atendi ao tal chamado. Bem, a coisa não acontece como num filme bíblico do Cecil B. DeMille. O processo é passeiro, quase imperceptível. Fui então buscar na memória, sempre traiçoeira, fragmentos de pequenos chamados que podem ter resultado no meu mergulho nas panelas.
Meu avô Marcelino chegando de navio da sua temporada anual em Portugal (o bon vivant fugia do inverno daqui e de lá) trazendo baús de iguarias: azeites, vinhos, queijos, línguas de bacalhau, rojões de porco (uma espécie de porco à passarinho mergulhado em banha, embalado em latas de folhas-de-flanders). Era difícil não acreditar em Deus ao abrir o queijo Serra da Estrela que o velho trazia especialmente pra mim, menino, e comê-lo acompanhado de um golinho de Porto.
A satisfação de minha mãe na cozinha em dias de celebrações em família preparando, num único dia, pimentões marinados, patês, polvo à provençal, arroz de polvo, cabrito à caçadora, paleta de porco assada, farofas amanteigadas. Comia-se, bebia-se, ria-se. A felicidade morava ali.
A sensação de vitória ao servir com sucesso a primeira aventura culinária aos oito anos de idade: pipocas espocadas na banha de porco. Aplausos!, vivas!…
São pequenos recados imprecisos que num dado momento se encaixam como palavras certas num poema. O médico psiquiatra austríaco Viktor Frankl disse certa vez que a vocação pode ser o sentido da existência. Não duvido.
Sobre o autor: Luigi Marnoto é santista, chef de cozinha. Atua na Panela Produtora.
Belo texto. Luisinho é um homem de muitos talentos.
Tenho cá comigo que ainda verei esse ex-dono de livraria nas estantes e vendendo muito.
Luigi é um poeta. Para ele, poesia se faz com forno e fogão. Lembro dele 20 anos atrás tentando fazer croissants no forno de sua casa a partir de uma receita publicada na Revista Gula, que simplesmente não funcionava. Inconformado, tratou de se aconselhar com padeiros e confeiteiros, e descobriu como fazer com que os croissants saíssem do jeito que queria, com seu toque pessoal. Outro qualquer teria desistido
e escrito uma carta para o editor da revista esculhambando com o autor da receita.
Por essas e outras é que me deu tanta satisfação que ele tenha aceitado meu convite e feito o texto. Um privilégio, sem dúvida.
Grande Luigi, um dia , quem sabe, iremos degustar um bom vinho e molhar as boas palavras.