Coisa mais delicada e confusa não existe. Todas se entendem mesmo falando ao mesmo tempo e sem parar. Não há momento de ouvir e de falar. A urgência de viver é uma constante, então os sentidos funcionam simultaneamente. Mulheres falam muito e ponto. Têm tanta informação pra trocar que uma vida inteira e longa não deve bastar. Se estão em volta de uma mesa e o assunto é comida não há quem segure.
Ontem, segunda-feira, 10/novembro, no Sesc Consolação, no período da tarde, acompanhei a oficina Memórias e Sabores da Cozinha Árabe, ministrada pela atriz Valéria Arbex, que está em cartaz no mesmo local com a peça Salamaleque, para senhoras, ou melhor, para “meninas da terceira idade”.
Entre cartas e grãos-de-bico é um projeto, do qual faz parte a peça de teatro, oficinas e encontros que propõem integração, valorização das relações humanas e o resgate das lembranças e da cultura por meio da conversa, da afetividade, do convívio e da comida.
“A culinária árabe e a oralidade são os pilares da pesquisa que deu origem ao espetáculo”, é o que diz o folder de divulgação do evento. E é exatamente a partir disso que tudo acontece ali, na vida real, em tempo corrido, quando estão reunidas duas dezenas de senhoras.
As receitas, embora sem nenhuma sofisticação, soam como uma grande descoberta. Não há nada de muito inovador em cobrir o pão com ervinhas maceradas com azeite e sal e levá-lo ao forno para torrar levemente. Minha mãe já fazia essas torradinhas saborosas para acompanhar um aperitivo alcoolico ou não desde que eu era bem criança. Mas a graça está na disposição que Valéria tem de propor que a atividade seja desenvolvida por mãos tão experientes como as daquelas senhoras, oferecendo a elas uma oportunidade de reaprender, revalidar, e até ressucitar conhecimentos antigos, com um olhar novo.
É nesse momento que acontece a mágica. Tudo se transforma em aprendizado e todas ali se tornam aprendizes, são novamente colegiais. É, no mínimo, encantador.
Na prática, foram apresentadas algumas ervas já conhecidas como o manjericão, a salsa japonesa, o tomilho, o orégano (que veio fresco e é uma novidade para muita gente) e outras não tão populares no Brasil, como o dill, e o zatar. Este último uma folhinha de origem árabe que, segundo a Valéria, é muito boa para a memória, “por isso as mães sírias e árabes costumavam por juntamente com o pão na lancheira das crianças quando iam pra escola”. Causou frisson, porque se há uma preocupação na terceira idade é o esquecimento, a falta de memória.
No Brasil, o zatar é comumente vendido já processado e como um condimento misturado a sumac ou sumagre e gergelim.
Além das ervas, o pão sanabel e o babaganuche, feito de berinjela, tahine e temperado com alho e limão.
Teve também uma água saborizada com essências que podem ser compradas no empório árabe, na região da rua 25 de março, reduto da cultura árabe em São Paulo. Para dar um gostinho especial à água: essência de água de rosas ou de flor de laranjeira, xarope de romã doce, folhinhas de hortelã, duas rodelas de limão siciliano ou limão cravo e um pouco de gelo. Cinco minutos descansando e ah! que gostoso matar a sede com algo tão especial.
Manifestação de afeto
Valéria Arbex tem um forno de 1956 ou 57, elétrico, que ainda funciona perfeitamente. Ela lida com ele como um parente próximo, de quem gosta muito e cujos atributos são dignos de serem apresentados publicamente.
Para Valéria Arbex, “a comida tem uma relação direta com o afeto”, é um elemento muito forte da cultura que permanece mesmo em situação de mudança de país. “Tem gente que se muda e nunca mais volta para a terra natal, mas a comida, o jeito de preparar, as receitas, mesmo sendo adaptadas aos ingredientes locais, essas vêm com as pessoas e ficam, se perpetuam”.
A tarde passou rapidamente. Teve conversa, comida e degustação, poesia, memórias e aplausos para as meninas que executaram perfeitamente a lição da professora Valéria. Tudo com graça, com doçura.
Pra mim, estar ali, foi uma honra. Ainda não cheguei na terceira idade e portanto sou forasteira. É assim que as meninas tratam as mais jovens, como se tivessem o privilégio da mocidade, dos movimentos e do raciocínio rápidos. Esquecem talvez, não por falta de memória, que seus anos a mais, lhes dão um brilho admirável, uma aura de conhecimento e experiência que lhes confere o nosso respeito e o desejo de também um dia chegarmos lá.
Parabéns ao Sesc mais uma vez e a Valéria Arbex, uma beleza de criatura.
Serviço:
Espetáculo Salamaleque – Com Valéria Arbex – Dia 11 de novembro de 2014, às 15h e às 20 horas, espaço Beta, 3o. andar. Duração: 100 minutos
Sesc Consolação – Rua Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque
Para saber das atividades da atriz, acesse www.facebook.com/ciateatraldamasco