Participação especial da chef Ana Franco
Como escrevi em outros posts, quinta-feira foi o dia escolhido para publicar textos de amigos queridos que estão diretamente envolvidos com o mundo das panelas. Observando a lista de convidados para nos brindar com experiências que fiz notei que cada uma ao seu jeito tem um quê de brincadeira, ironia, perspicácia. São pessoas que olham a vida com humor e apreciam dela os sabores, mesmo os mais amargos e azedos com leveza porque sabem que faz parte.
Hoje, minha convidada especial é a Ana Paula Franco Ferreira, uma amiga querida de muitos anos, que é especialmente inteligente e tem o que chamo de “tirocínio” implacável porque não deixa a bola quicar na área. Ela chuta pro gol e balança a rede!
A Ana é chef de cozinha. Só pra ter ideia do quanto essa mulher é arrojada, veja que história curiosa. Certo dia, estou eu mudando os canais da televisão junto com meu pai e ele me diz para por no Silvio Santos pra gente ver o Show do Milhão. Ele adorava esse programa e eu também. Eis que quem está na tela respondendo as perguntas iniciais do apresentador é a Ana Paula. Na hora eu pensei, ela vai levar o milhão porque é muito esperta. Naquele momento ela explicava para o Silvio Santos que com o dinheiro que ganhasse iria para Austrália estudar Gastronomia. Ganhou um bom dinheiro e foi.
Quanto à trajetória como chef, recomendo conhecer o Cozinha de Ideias, um projeto dela que tem um pouco de tudo do mundo da Gastronomia, com charme, elegância. Porque a Ana é cosmopolita (não sei se ela vai curtir esse adjetivo) e multicultural.
O texto foi uma escolha minha entre os muitos do Cozinha de Ideias, claro que autorizado por ela, que anda mega ocupada e não quis me deixar na mão. Então sugeriu que eu me servisse no seu maravilhoso menu de ideias. Adorei!
Por que Ferran Adriã matou Bernard Loiseau?
Ou: “A vitória do tecnoemocional da cozinha espanhola sobre o clássico da cozinha francesa”
Em 24 de fevereiro de 2003 o mundo gastronômico entrou em estado de catatonia: Bernard Loiseau, chef 3 estrelas no Guide Michelin, tirou a própria vida com um tiro do seu rifle de caça, no quarto de sua casa, após um dia normal de trabalho.
Aos 52 anos, esse filho de um caixeiro viajante e de uma dona de casa nascido em Auvergne na região da Borgonha tinha atingido o ápice da carreira de um cozinheiro: cotação máxima no mais cultuado guia do planeta e 19/20 pontos no Gault-Millau (o maior e mais prestigiado concorrente do Guide Michelin). Seu estabelecimento, o La Côte d’Or, após anos de intermináveis e minuciosas reformas estava exatamente como ele imaginara. Tinha três filhos e seu casamento ia muito bem, obrigado. O que teria levado então esse homem carismático, queridinho da mídia e amado por seus pares e empregados, à atitude tão drástica?
Na época discutiu-se muito sobre a crueldade dos guias em erguer e destruir profissionais com a mesma facilidade com que se escolhe comer um hambúrguer hoje e uma pizza amanhã. Falou-se também da falta de clareza nos critérios de avaliação e na nuvem de mistério propositalmente criada para envolver os inspetores Michelin. Mas a maioria dos dedos foram apontados para François Simon, renomado crítico de restaurantes do periódico francês Le Figaro. Simon especulara em um artigo publicado em janeiro daquele ano que o La Côte d’Or perderia pontos no Gault-Millau e seria também rebaixado no Michelin. De fato Loiseau perdeu dois pontos na sua cotação, indo de 19 para 17/20 (o mesmo ocorreu com Paul Bocuse), mas as estrelas Michelin seriam mantidas, assegurou-lhe o diretor da entidade. Em 7 de fevereiro Simon dá mais uma estocada: a manutenção das estrelas era temporária; Bernard iria fatalmente perdê-las pois sua cozinha não era mais relevante.
A pergunta que ninguém conseguia responder era: que ser humano normal se abate tanto com uma crítica a ponto de tirar a própria vida?
A resposta pode ser encontrada no ótimo livro “O Perfeccionista”, do jornalista e escritor Rudolph Chelminski. Como o título sugere, Bernard era um perfeccionista. Mas não só isso. Era um perfeccionista bipolar e desde muito cedo mostrava traços megalômanos em sua personalidade.
O que matou Bernard Loiseau não foi a possibilidade de perder suas tão amadas estrelas, foi a incapacidade de reinventar-se, de acompanhar as mudanças que aconteciam nas mesas do mundo. A nouvelle cuisine há muito já não era nouvelle. Bastiões da gastronomia francesa já começavam a curvar-se diante de novas técnicas (como as japonesas) e do uso de ingredientes exóticos. Os espanhóis já faziam algum barulho com sua cozinha tecnoemocional (Adriá repudia o termo “cozinha molecular”), anunciando a próxima onda gourmet. E Bernard, que havia pulado muitos degraus na escada que leva ao topo, não sabia como reagir, como adaptar-se aos tempos modernos.
Imagem do livro |
O livro de Chelminski não se prende apenas à biografia de Loiseau (de quem era bastante próximo): faz também uma reconstrução precisa da genealogia da cozinha francesa, desvenda um pouco do mistério por trás dos guias e ensina aos não-franceses o real significado e importância de ser chef de cozinha no país berço da Alta Gastronomia.
Recomendo enfaticamente sua leitura que além de deliciosa, propõe vários debates. Entre os que mais martelam na minha cabeça, fica a questão da importância da crítica gastronômica especializada num tempo em que o anonimato da profissão parece irrelevante – qualquer dono de boteco reconhece de longe a careca do Josimar Melo – e que todo blogueiro é um crítico por natureza.
Quando quer jantar num bom restaurante você procura na Vejinha? No Guia 4 Rodas? Ou telefona para aquele seu amigo que entende tudo de gastronomia?