Terra de índio que fala corretamente português
Batizada com nome português, Santarém é uma cidade grande (300 mil habitantes) onde a cor das pessoas é linda: cor de índio. Que inveja eu tenho dessa pele bonita, dessa carne dura e desses olhos amendoados e negros como jabuticabas.
Fiquei lá bem pouco tempo e deu pra ver como apesar das dificuldades de uma região que ainda é pobre (na nossa definição comum de pobreza), não existe coitadismo por ali. O olhar das pessoas é firme seja para quem for e o que eu senti é que não há servilismo naquela terra, o que independe de generosidade e solicitude, dois bons substantivos abstratos para quem quer definir um povo hospitaleiro.
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Barcos de passageiros e pesqueiros em Santarém |
Ganhei do Silas para ler durante a viagem que seria longa (e foi) o livro do Mia Couto, E se Obama fosse africano? , e digo que nada poderia ter sido mais propício para resumir o meu olhar durante minha breve permanência de quatro dias na região amazônica do que foi esse presente. Lá pela página 103, encontrei o trecho que reproduzo a seguir:
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Não fui para ver a praia de Alter de Chão, que é linda, sem dúvida, uma joia do rio Tapajós com areia branca e água doce e quente para tomar banho. Fui em busca de aventura e conhecimento do que é o Brasil, por curiosidade e oportunidade. Fui para ver de perto o rio Amazonas, sonho antigo, comparável a conhecer Roma, Paris, Foz do Iguaçu ou o Cristo Redentor. Voltei melhor, então valeu a pena.
Dá para escrever capítulos longos de impressões, cheiros, cores e emoções. Hoje, como só tenho aqui comigo fotos do meio da viagem, escrevo sobre um pedaço da minha aventura que está mais para o fim do que para o começo dela.
Na segunda-feira, depois de passar o fim de semana em Alter do Chão, estávamos em Santarém. O Silas foi cumprir o trabalho que nos levou até lá e eu fiquei no hotel sozinha com o dia todo para pesquisar e aprender aquela cidade.
Lá pelas dez da manhã, perguntei na recepção do hotel se havia um ônibus que me levasse de onde estávamos até o mercado municipal porque eu sabia que esse seria um lugar que me traria experiências interessantes. A resposta foi a mais feliz. “Sim, bem aqui em frente, atravessando a rua, passa o Liberdade. É só perguntar ao cobrador o ponto mais próximo para descer bem perto do mercadão”.
Foi o que fiz. Descobri, não sem antes perguntar novamente para dois rapazes na rua em frente onde poderia pegar o ônibus, o ponto que não tinha placa ou qualquer tipo de sinalização. Uns 15 minutos de espera e subi pela porta de trás, diferente de São Paulo onde se sobe pela frente, no Liberdade. Pedi à cobradora, uma índia muito sisuda, se poderia me indicar o ponto mais próximo ao mercado para que descesse. Ela ascendeu a cabeça me mandando sentar com um simples olhar informando-me que me avisaria sem balbuciar uma só palavra.
Entre tranquila e curiosa percorri 35 minutos o trajeto do ônibus até que vi novamente o prédio do hotel onde eu estava hospedada. A mulher me havia esquecido. Fui até ela e só naquele momento vi um sorriso que escapava um dente lateral brilhando uma ponte prateada, sinal de algum constrangimento por ter se perdido em sonhos e esquecido o pedido da passageira turista. Ela me disse que eu teria que dar outra volta. Fiquei então ao lado dela e a cada cinco minutos eu a olhava indagando se não me havia esquecido novamente.
Desci ao lado do mercado depois de ter deixado o hotel há mais de uma hora. Não perdi meu tempo, se é o que parece. Ao contrário, eu comecei a me sentir um pouco local, já que circular mais de uma vez pelo mesmo lugar me fez localizar onde estavam alguns pontos-chave. Eles me seriam úteis para que, caso eu não tivesse ajuda ou informação, pudesse voltar caminhando para o meu ponto inicial.
Nas ruas de Santarém, corre esgoto a céu aberto em valas ao lado do meio fio. Algo entre chocante e fétido, o cenário não é nada hospitaleiro, nem agradável para quem vive lá ou para quem visita. As calçadas são estreitas, os ônibus e carros não respeitam muito a sinalização de parada que é quase inexistente, e o sol é incessante, não dá trégua em hora alguma do dia no período da estiagem.
Pela primeira vez, eu permaneci alguns dias em local de clima equatorial. Diferente do tropical no verão apenas na umidade que é constante. Nem bem você terminou de tomar um banho refrescante em chuveiro frio (lá é atrativo dos hotéis os chuveiros quentes!) e já está suando e grudando. Graças ao ar condicionado, é possível tomar uns 30 choques térmicos por dia sem muito esforço. Sem reclamação alguma, o clima é quente! De dia e de noite.
Voltemos ao mercado, um prédio cheio de lojinhas sem ordem definida sobre para que lado devem abrir suas portas, se para a direção da calçada ou pra dentro. Algumas são de um jeito, como as de roupas, viradas para a rua, outras de outro, como as dos vendedores de garrafadas, voltadas para onde passam pessoas que procuram farinha, frutas, peixes, camarões ou remédios para qualquer tipo de mal.
Uma característica interessante é que o complexo de lojas que compõem o mercado municipal de Santarém mistura lojas empoeiradas de pé direito baixo fechadas por grades ou alambrados e espaços mais amplos com pé direito bem mais alto onde se distribuem os vendedores de frutas, legumes, verduras e farinhas de mandioca e de peixe. Há também um outro prédio conjugado com pequenos boxes azulejados onde se vende peixe fresco. Entre um lugar e outro ficam os vendedores de camarões que tanto podem ser secos, como limpos, mas não são frescos porque se fossem deveriam estar na área de azulejos onde escorria água e tinha gente de uniforme lavando com mangueira.
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Boxes de peixeiros |
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Camarões |
Bem perto dali, atravessando a avenida da orla, bem à beira do rio, um prédio grande e vazado para que se tenha a brisa vinda da movimentação da água a que chamam Feira de Peixes, vende o que foi recém trazido do rio Tapajós: surubim, tambaqui, tucunaré, pirarucu e outros tantos fresquinhos, suculentos. Como eles dizem por lá, peixes lisos, que são os que não têm escamas.
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Feira de peixe, Santarém |
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Douradas sobre tucunaré |
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Na tábua do corte, costela de tambaqui |
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Próxima ao peixeiro, surubim. Em frente, diversos |
Dei uma volta pela feira, fiz umas fotos, ainda um pouco tímida, perguntei algumas curiosidades sobre os peixes e a farinha feita deles para os vendedores, e voltei para o prédio do mercado.
Chama a atenção o uso da farinha de mandioca nesse local. Há muitos comerciantes desse produto que é subdividido em diversos tipos dependendo do uso que se pretende. Eu vi uns 20 tipos diferentes, entre brancas e amarelas, finas e rugosas, leves e pesadas. Depois de vencer a timidez, me aproximei de duas jovens que compravam um dos tipos e perguntei para que servia. Uma delas me olhou com carinho e me explicou rapidamente usos diferentes para mingaus, para comer pura, para engrossar ensopados e molhos, para fazer bolo, tapioca, beiju… A outra me olhou de cima abaixo como se visse um extraterrestre. Deve ter pensado como alguém pode não conhecer uma simples farinha de mandioca. Conhecimentos e sabedorias diferem mesmo, é assim que é. Não me senti diminuída, mas me vi criança diante daquela sabedoria e me lembrei de outro trecho do livro do Mia Couto, quando ele fala de infância:
… A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleçao de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar.
Eu senti que não é “demasiado tarde” para aprender sobre as farinhas.
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Farinha de peixe |
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Variedade de farinhas de mandioca |
Lá pelo meio do caminho, ouvi vozes com sotaque estrangeiro que anunciavam uma atração entre as frutas. Uma artista de circo subiu na banca de abacaxis e fez um espetáculo com bambolês. Surpreendente para uma feira a meu ver. Os homens que eram a maioria daquele lugar pareceram gostar do rebolado da estrangeira que habilmente jogava e dançava com as argolas que a ajudavam na performance atraindo olhares de cobiça.
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Performance com bambolês sobre a banca de abacaxis |
Não poderia deixar de contar o episódio na grande banca das garrafadas. Estava eu com olhar curioso lendo os rótulos pregados em garrafas pet de coca-cola, outros em garrafas de vidro, alguns manuscritos, outros feitos no computador, alguns ainda já mais industrializados, quando chega um senhor e pede ao dono da barraca algo para impotência. O rapaz vai logo dizendo que tem excelente elixir e que vai resolver todos os problemas daquele cidadão. No meio da venda, vira-se para mim e pergunta com firmeza:
– A senhorita quer mel puro de abelha?
E eu respondo:
– Não. Só busco informação.
E ele, prontamente, me diz algo como:
– Sim, eu tenho! Para inflamação, coisa de mulher? Tenho, sim, isso resolve qualquer mal relacionado a ciclo de mulher.
E já foi pegando uma garrafinha pequena com rótulo industrializado com um desenho do aparelho reprodutor feminino ilustrando o vidro. Eu, por minha vez, tentei esclarecer que só buscava informação sobre as garrafadas. E ele então devolveu o vidrinho para o seu local de origem e continuou a atender o tal homem que queria curar-se da impotência.
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Garrafada para “inflamação de mulher” |
Fui me afastando quando percebi que ali tinha mais encenação para fazer a turista com cara de jornalista de máquina fotográfica em punho prestar atenção na conversa, do que realidade e busca de remédio para impotência. Saí de perto pensando que os homens, diante de uma mulher desconhecida, agem mesmo como tolos muitas vezes. Não sei se eu é que fui preconceituosa, mas foi como senti a situação. De todo modo, tem garrafada que cura qualquer mal, de insônia a câncer. Tenha o elixir apenas eficácia simbólica ou nem isso, está lá disponível dentro do vidro, pronto para quem quiser pagar entre dois e cinquenta ou cem reais. O preço vai depender do freguês.
Fiz uma lista de palavras para pesquisar quando parei diante de uma grande banca com saquinhos contendo lascas de árvores, chás, folhas de matos cheirosos, frutos secos e sementes. Entre as palavras estão: cafuasu, capeúba, uxi amarelo, jucá, andiroba, envirataia, jureia, barba limão, escada de jabuti, sacacá, sucuba, pau tenente, saracura mirá, carapana ubá, asaçu, imburama, jurema, mururé, unha de gato, juá e sucupira. Trabalho não me falta. Mas devo recorrer à Neide Rigo, do blog come-se que, mais dedicada que eu aos nomes científicos e às eficácias desses elementos, esteve no Pará há pouco tempo e publicou informações detalhadas sobre plantas e ervas que encontrou na região.
Depois desse passeio pelo mercado e de tantos cheiros, cores e sensações, parei na lojinha de produtos feitos de palha: cestos, potinhos, porta-joias, fruteiras, descansos de panelas para mesa, sousplats, bolsas, enfim, coisas bonitas de ver, empoeiradas e que, nem tão baratas atualmente por aquelas bandas, ainda são bem mais em conta do que quando são encontradas em lojas em São Paulo, como Etna e Tok&Stok. Certo é que são objetos produzidos pelos indígenas que têm bom gosto e funcionalidade para o dia-a-dia.
Quando terminava minha compra, o telefone tocou e era o Silas, dizendo que ele e um pessoal da Ufopa – Universidade Federal do Oeste do Pará – me buscariam para almoçar. Terminou meu tempo no mercadão de Santarém, mas não as minhas emoções dessa segunda-feira, anteontem.
Por hoje, paro por aqui com um trecho um pouco modificado que escrevi rapidamente para a Euzi numa troca de emails me referindo ao que vi nas pessoas que encontrei nas ruas de Santarém:
Eu estive no Pará. Fiquei entre perplexa e feliz com a atitude deles lá. Preconceito meu, eu achava que lá entre o Pará e o Amazonas onde eu estive, as pessoas teriam uma aura de coitadismo que muitas vezes vemos nos nossos conterrâneos nordestinos. Ledo engano. Eles são o Brasil de fato e direito e sabem bem disso. Falam um português correto, bem pronunciado. São hospitaleiros. Comportam-se como cidadãos (apesar dos que também são preconceituosos demais com os paulistas brancos como eu e aumentam os preços dos peixes e da garrafada, há também os que jogam latinhas vazias pelo vidro do carro) e sabem que estão em cima do ouro mais ouro de todos: a água. A gente que não os respeite e eles dão de ombros para a nossa pseudo-sabedoria mais livresca e televisiva. Eles, apesar da pobreza das cidades, vivem no paraíso e lá é quente pra caramba!
Oi,
Oi, Clau
Foi mesmo uma gostosura ter compartilhado um pouco dessas experiências com você no Pará e, agora, no blog.
Gostei muito da sua sensível leitura do mundo. Bj
Oi, Vania, eu adorei conhecer você. Nosso jantar foi uma delícia. Que a vida nos dê novas oportunidades para que nos reencontremos outras vezes.
Eu bloguei no sábado tudo o que rolou na viagem enquanto ficamos em Alter do Chão. Dê uma olhada. Hoje tô na lida da cozinha! rsrs. Desossando e recheando frango!
Em tempo: é uma honra pra mim receber um post como esse seu. Obrigada! Bjao pra vc.