Sábado fim de tarde e vem aquela vontade de ir ao cinema. De preferência, fazer isso com calma, sem atropelos, sem correria. Em busca de entretenimento e prazer. A ideia é ver um filme bem feito, se possível em cinema de rua, que não exija entrar no shopping, pegar filas quilométricas para comprar o ingresso e ter que sentir aquele desagradável (ao menos pra mim) cheiro de manteiga de pipoca do Cinemark.
Nada contra o Cinemark. Acho que tem salas excelentes, com ótimo som, cadeiras confortáveis e projeção de boa qualidade. Quanto aos filmes em cartaz, nem sempre oferece as melhores opções, a menos que você busque um blockbuster. Contudo, só porque estão nos shoppings, esses cinemas têm preços mais altos e pra mim não têm charme. Eu gosto mesmo é de cinema com aquele jeito de interior, como os que a gente ia quando era criança para ver filme dos Trapalhões ou as produções dos estúdios Disney.
Eu tinha um cinema a meio quarteirão da minha casa e me lembro do primeiro filme que fui assistir: Se minha cama voasse! Uma mistura de filme com animação que, acabo de saber (enquanto pesquisava), rendeu um Oscar aos estúdios Disney no ano de 1971. Eu assisti muitos anos depois, mas nem tantos assim, porque quando vi eu ainda não sabia ler, gostava só da parte dos desenhos e quase caí no vão da cadeira com assento retrátil. Minha mãe tinha que ficar me acordando toda hora e me contando o que dizia a legenda, mas insistiu que ficássemos até que estória acabasse.
Cartaz do filme Se minha cama voasse (1971) |
Estou certa de que esse episódio despertou em mim um amor intenso e eterno pelo cinema. Até hoje sonho com o baleiro do Cine Boni, na Vila Nova, em Itu. Como muitos outros de cidades pequenas, com o tempo decaiu, se transformou em cinema pornô e depois foi aterrado e virou igreja evangélica. Como em Cinema Paradiso, sempre penso em resgatá-lo… mas por ora é causa perdida.
Alfredo e Totó em Cinema Paradiso (1988) |
Esse era o meu grande temor quando acompanhei todo o processo pelo qual passou o Belas Artes, em São Paulo. Trabalhando ali perto vi o dia que o cinema fechou as portas e no seguinte não abriu mais. Com meu coração apertado, assistia a cada dia uma pichação a mais na sua fachada, uma pessoa a mais dormindo debaixo de sua marquise, e deixei de ver os pipoqueiros que, por força da situação, já não paravam mais na sua entrada na rua da Consolação.
Graças a gente mais corajosa que eu, embora eu também tenha “abaixo-assinado”, uma grande mobilização se deu em razão do fechamento do Belas Artes. Patrimônio cultural da cidade, o cinema não podia ficar à mercê da especulação imobiliária. Três anos depois, ele foi reaberto em julho passado, bem nos dias em que eu estava viajando de férias. Mas, que alegria! O Belas Artes está de volta desde o dia 19 de julho de 2014, mas só ontem pude ir até lá e ver como voltou.
O mesmo charme, gente bonita e antenada, bons filmes em cartaz. Tudo o que buscávamos para um tranquilo sábado à noite.
Escolhemos assistir Bistrô Romantique. Chegamos em cima da hora e acabamos comprando ingresso para a sessão das 21h. Enquanto esperávamos, encontramos antigos amigos do Silas, conversamos até que eles entrassem na sessão de outro filme. Depois, passeamos pela avenida Paulista, conhecemos a nova loja da Riachuelo e fomos comer um pedaço de pizza na rua Augusta. Um café e um sonho de valsa na cafeteria do cinema, o reconhecimento do espaço e vamos lá.
A sala 1 – Villa Lobos – no andar superior, tem capacidade para 300 lugares, mas não tinha não estava nem metade preenchida. As cadeiras são numeradas, a poltrona não reclina, mas é confortável o suficiente para degustar um bom filme, que era o que buscávamos. Sem excessos. Um cinema. Boa projeção, bom som, boa localização, pipoqueiro na porta (cheiro de pipoca e não de manteiga!).
Bistrô Romantique é uma dessas apostas certeiras do cinema alternativo em uma fórmula já bem explorada por outros cineastas, mas indiscutivelmente por Ettore Scola com La cena (O jantar) de 1998 e anteriormente, em 1982, em Le Bal (O Baile). Tudo acontece numa única noite, entre o tempo de abrir e fechar de um restaurante. É dia dos namorados e, apesar do tempo estar chuvoso, as reservas para o jantar não foram desmarcadas.
O Jantar (1998) |
A bela e um pouco triste Pascaline protagoniza o filme como a dona da Brasserie Romantique, cujo chef é seu irmão alcoólatra. Uma sobrinha, dois ajudantes de cozinha e um garçom compõem a brigada. Entre os comensais, um homem do passado, um casal em crise no casamento, uma mulher abandonada, um esquisofrênico em busca do amor e casais normais. O menu especial para o dia dos namorados dá o tom, o sabor e marca a passagem do tempo.
Para quem gosta de gastronomia, Bistrô Romantique é uma aula de tudo o que pode e o que não pode acontecer numa cozinha e num restaurante. Da cuidadosa mise en place feita por Pascaline ao cardápio especial da noite cujo aperitivo une champagne e licor de rosas, da delicadeza do bem servir ao frenético inevitável trabalho entre as panelas, da sofisticada e perfeita finalização dos pratos ao incansável trabalho de por tudo em ordem quando os últimos clientes se vão, tudo é retrato do mundo apaixonado dos que vivem para cozinhar e servir. Dá veracidade ao enredo, o fato de o bistrô ter um “chapéu de chef” ou algo equivalente ao que conhecemos como estrelas do Michelin.
O filme que parece despretensioso, tem toques de drama sentimental sem escorregar na pieguice de transformar a protagonista em heroína. Trata de assuntos delicados como a esquizofrenia, depressão, solidão e abandono, sem deixar de por alguma de graça no comportamento das personagens que vivem esses problemas. Causa riso, mas não faz chacota.
Cenas de Bistrô Romantique (2012) |
Bistrô Romantique lembra outros filmes que você já viu
É um pouco Woody Allen, com seus neuróticos, obcecados e inseguros personagens. Lembra O Filho da Noiva, no qual Ricardo Darín herda o restaurante de seu pai e vê sua vida passando sem que ele possa construir sua própria história. Parece com O Jantar, de Ettore Scola, já que todo a trama transcorre da entrada à sobremesa. Tem um pouco de Simplesmente Martha ou Sem Reservas porque é na cozinha que se questiona a relação de responsabilidade e amor entre tia e sobrinha. Também por isso, lembra Chocolate. Dá água na boca como fez Babette, em seu banquete memorável. Com toda falta de originalidade, é gostoso de ver. Tem boa fotografia, a luz é adequada para cada tomada, a montagem é bem feita em sua trajetória linear, a música não surpreende, mas agrada, o enredo não escorrega em dramas intermináveis embora previsíveis. É apenas um retrato de uma noite em que se comemora o dia dos namorados e a vida que segue num restaurante belga.
Simplesmente Martha (2001) |
O Filho da Noiva (2001) |
Melhor que ir ao cinema do shopping, procurar vaga para estacionar, pagar caro do ingresso e do estacionamento e assistir a um blockbuster, é ir ao Caixa Belas Artes e ver Bistrô Romantique no sábado à noite. Programa simples e honesto.
Saí de lá com imagens pregadas na minha retina, imagens que me agradam como cozinha, pratos, panelas, champagne no gelo, borbulhas no copo… Mais que isso, fiquei com vontade de ver outro filme. E quando se trata de cinema, isso é um ótimo começo.
Desde ontem, voltei formalmente a ser frequentadora do Belas Artes. Que bom que ele voltou!
Em tempo: o Cine Bela Artes agora se chama Caixa Belas Artes, devido a questões relativas ao direito de nome e em razão de como foi feita engenharia financeira para que fosse reaberto. Não houve, entretanto, grandes alterações no interior do cinema. Tudo parece com o que era antes de fechar. Claro que está novo, uma vez que foi reformado, mas para quem já frequentava os banheiros estão nos mesmos lugares, as salas também, assim como o café, a bilheteria e a livraria. Ele ainda fica na rua da Consolação e tem uma fila não muito longa. Agora dá pra pagar com cartão e tem um jeito de ficar sócio ou ter cadeira cativa. Dê uma procurada para saber. Pode valer a pena para garantir que esse patrimônio cultural continue onde está por muito, muito tempo.
Boa semana!!
Serviço
Cine Caixa Belas Artes
Rua da Consolação, 2423
Tel. 11 2894 5781