Revista Bem Mulher, edição número 11
Esta semana saiu edição 11 da revista Bem Mulher. Em Gastronomia & Hospitalidade, coluna que assino, desvendo a joia do Goiás para quem ainda não a conhece: Pirenópolis, uma cidade encantadora de gente muito hospitaleira.
Pirenópolis – Uma joia no centro do Brasil
Pirenópolis
Você já esteve em Pirenópolis? Já ouviu falar? Sabe onde fica? Se as respostas forem positivas, imagino que minhas impressões sobre o lugar possam ativar suas saudades, mas, se nunca esteve lá e nem sabe onde é, acredite em mim, é um lugar encantador e, um dia desses, vale a visita.
Pirenópolis é uma cidadezinha bonitinha aos pés dos Pireneus de Goiás, em cujas cachoeiras os brasilienses se refrescam do calor do Planalto Central seja em tempos de chuva ou de seca, porque sempre é quente no Distrito Federal.
Eu já havia estado lá tempos atrás e, de verdade, me encantei com a cidade. Ela é uma joia colonial preservada bem no centro do estado de Goiás, a cerca de 150 km da capital do país. Se for visitar Brasília (espero que todo brasileiro faça isso um dia porque é a capital de um país diz muito sobre ele), aproveite um fim de semana e estique a viagem até Pirenópolis.
Para quem reclama que no Brasil não há preservação histórica, eis que surge uma exceção que só confirma a regra. É a bela cidade de chão de pedra e fachadas perfeitamente preservadas de casarões coloniais e também casinhas mais modestas, com uma porta e duas janelas de madeira que dão pra calçada (sem garagem, graças a Deus!), nas quais os moradores se debruçam para ver a vida passar e saber o que acontece pela rua. Todo o centro da cidade é assim. Não há uma só fachada em ruínas, dá pra acreditar?!
Acho que meu encantamento pela cidade tem a ver com minha memória de infância, porque Itu, a cidade em que eu nasci e vivi até os 17 anos, já foi assim. Exceto pelo calçamento de pedra, que em Pirenópolis foi feito com sobras da pedreira de quartzito-micáceo, e em Itu, de paralelepípedo, que em geral provém da de rochas, tudo era bem parecido nas duas cidades.
Lamentavelmente, os destinos de ambas foram bem diferentes. Itu não teve a mesma sorte de Pirenópolis, que, de acordo com o site da cidade:
“Em 1989, a cidade foi tombada pelo IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como conjunto paisagístico e em 1997 iniciou-se um projeto de revitalização do Centro Histórico, quando a Igreja Matriz, o Cine-Pireneus, o Teatro de Pirenópolis e outros monumentos foram restaurados, reformados e reconstruídos criteriosamente”.
Como paulista que sou, admito meu pouco conhecimento sobre a história e a preservação de locais no Brasil que não estão relacionados facilmente em livros didáticos nas disciplinas como História e Geografia.
Além do que não conheço bem a história do Brasil que não está nos didáticos livros que enaltecem São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e o Nordeste (feito só de Bahia e Pernambuco). Talvez por isso me cause alguma perplexidade a descoberta de lugares tão incrivelmente bem desenvolvidos em termos turísticos e históricos como a pequena Pirenópolis ou a encantadora Goiás Velha, essa última a doce e poética cidade de Cora Coralina.
Pirenópolis é lugar de ir e ficar uns dias ou de visitar várias vezes. Repleta de pousadas de gente hospitaleira, é charmosa e muito festiva. Ali a festa do Divino dura 20 dias, com tudo o que tem direito, preservando um folclore que já não se vê facilmente. Por lá, ainda fazem as “Cavalhadas”, um tremendo espetáculo de luta entre cavaleiros de grupos rivais que envolve grande parte dos moradores. Isso é característico nas festas populares muito tradicionais do interior e atrai turistas de toda parte, curiosos dessas manifestações artísticas.
Mas o entretenimento vai além. Tem igrejinhas históricas, comércio de souvenirs, de artesanato e de tapeçaria e roupas de casa; tem sorveterias, restaurantes e bares para diversos gostos e bolsos; tem uma riqueza histórica de dar gosto e uma exuberante natureza que a rodeia, com uma cadeia de montanhas que são os Pireneus do Brasil (nada a ver com os Pireneus na Europa) e a característica vegetação do Cerrado, que, não falta muito, se tornará apenas pastagem para o gado, o que é algo a se lamentar.
No Cerrado, não raro, se encontram ilhas de vegetação características da Mata Atlântica. Ele é o bioma intermediário entre a faixa litorânea e o território da Amazônia e, bem por isso, tem importância fundamental para a preservação de um sem número de espécies animais e vegetais que só existem em função dessa área de transição.
Há muito pra ver e comentar sobre a pequena e acolhedora Pirenópolis, mas não pretendo me deter em características históricas, que isso já houve quem tenha escrito com mais conhecimento e competência que eu.
Eu quero mesmo é contar que por lá tem um restaurante que é antiquário ou um antiquário que é restaurante. Melhor que isso, é que só se serve bacalhau. Sim!!! Um cardápio com seis pratos de bacalhau no qual há uma incrível moqueca com um toque bem baiano, já que leva coentro e azeite de dendê.
Causa estranheza uma moqueca feita de bacalhau? E um antiquário onde todos os itens à venda são usados pelos clientes do restaurante, tais como pratos, copos, talheres, mesas e cadeiras?
Às vezes a gente se espanta com o que algumas pessoas são capazes de criar ou recriar só porque é algo pouco comum. Esse lance de antiquário/restaurante nem é tão inédito assim, mas com eu amo gente que inventa e consegue fazer acontecer, acho que vale contar com detalhes a experiência no restaurante e antiquário da Bibba.
O lugar é desses pra gente se sentir acolhido, tantas são as peças bonitas e de bom gosto que guarda. Tem coisa igual a da casa da avó, da tia, da mãe da gente quando éramos crianças, e, muito garimpo de objetos eternos como são as obras de arte: quadros, esculturas, móveis de design datado, pratarias, lustres… Um pouco de tudo.
Segundo o dono, que não é o Bibba, é o Henrique, a mulher dele é que é a cozinheira e dá nome ao restaurante, eles vivem do antiquário. Mas, a ideia de transformá-lo também em restaurante se deu porque, durante cerca de cinco anos, os turistas de Pirenópolis não entravam na loja pra ver as antiguidades. Algum receio fosse talvez o motivo.
Comércios que não têm a porta escancarada pra rua e que, visivelmente, têm objetos de alto valor, muitas vezes causam constrangimento ao cidadão comum. A gente fica meio sem graça de entrar porque dá aquela sensação de que a gente não entende do assunto e por isso não pode nem olhar. Bobagem! Mas é fato que os profissionais de marketing estudam direitinho esse comportamento de compras dos clientes e há estabelecimentos comerciais que perdem muito do dinheiro investido no negócio exatamente porque causam essa sensação nos seus potenciais consumidores. Só que não é esse meu foco. A história do Henrique é.
Ele amargou, portanto, cinco anos com o antiquário lá no mesmo local e sem público. Até que resolveu unir a experiência de cozinha da esposa, a Bibba, com os objetos e a mobília do antiquário que fica num ponto excelente, bem na rua principal do comércio turístico da cidade. Bingo!
Como é descendente de portugueses, decidiram que a especialidade da casa seria bacalhau. Outro ponto positivo a meu ver.
Criaram um cardápio enxuto com apenas seis pratos, todos feitos com bacalhau, ou seja, se você não come bacalhau não vai jantar ali. Isso restringe o público, mas é uma estratégia inteligente uma vez que, como sabemos, bacalhau é um produto caro e, só por isso, já implicaria em posicionar o restaurante num patamar alto.
O tempero da mulher é incrível, esse é outro diferencial. Assim como a ideia de jantar sentado frente a uma mesa antiga em perfeito estado, com louças, talheres e copos que são peças de muito bom gosto, tendo sobre a sua cabeça um belíssimo lustre de cristal, também garante ao cliente uma experiência das melhores.
Dar utilidade ao que é agradável e vice-versa
A ideia é boa por princípio. Se já existia o ponto comercial e nele se vendiam mesas,
cadeiras, baixelas de porcelana, faqueiros de prata e copos de cristal, usar esses itens para que as pessoas tivessem a experiência de desfrutá-los, degustando uma comida feita com produtos selecionados por uma chef que entende bem a alquimia feita em panelas e sobre o fogão, era mesmo algo pra dar certo.
Os itens usados pelos clientes podem ser comprados, assim como tudo o que está dentro da loja está à venda. Com o restaurante, mais gente entra no antiquário sem receio.
Disse-nos o Henrique, tagarela e simpatia em pessoa, que agora, por ali, passam autoridades do Planalto Central, gente com poder de voto e veto em leis desse país. Os que visitam, voltam, porque a comida é boa e o ambiente agrada.
Aliás, a experiência não tem só a ver com a comida e o local. Tem a ver com a hospitalidade. Isso é o mais! Faz diferença e não tem preço. Tem valor!
A experiência hospitaleira
Recepção – Meu marido e eu chegamos ao restaurante sem ter feito reserva e mesmo assim fomos bem recebidos. A porta de vidro que fica fechado foi aberta por uma mocinha simpática uniformizada sem frescuras com um avental do restaurante. Ela logo nos informou que ali só serve bacalhau, que não é necessário reserva e que podíamos ficar à vontade para visitar o antiquário. Pedimos o cardápio, que é simples, para dar uma olhada nos preços e, embora um pouco acima dos valores de outros restaurantes ali da mesma rua, nos pareceu razoável pagar aqueles valores para comer naquele lugar tão diferente, de aparência requintada e com aquela proposta de pratos.
Carta de vinhos – Escolhemos uma mesa e o que comeríamos: uma moqueca de bacalhau. Bem diferente, o prato mistura a especialidade portuguesa com o jeito e o tempero da comida baiana (não que a segunda não tenha total influência da primeira, mas é um pouco inusitado).
Como eu pretendia tomar vinho, por prazer e desafiando as regras, escolhi um rosé, apesar do prato que, talvez, harmonizasse melhor com um tinto.
A carta de vinhos, principalmente portugueses, é até vasta, já que estávamos num pequeno restaurante de uma pequena cidade em pleno Cerrado brasileiro. Minha expectativa era de que não fosse haver opções para bolsos menos requintados do que os dos comprados de peças de arte em antiquário. Havia.
A comida – Eis que chega a comida. A moqueca de bacalhau é não só de matar a fome como de tirar a barriga da miséria. Bem servida em quantidade, bem temperada, cheirosa e na temperatura exata, ainda mais porque que vem em panela de barro pra mesa.
Um deleite! Comemos. Repetimos e sobrou mais da metade do prato. Levamos uma quentinha para o almoço do dia seguinte, que aquilo é prato que não se desperdiça. Se não comêssemos nós mesmos, alguém com fome a quem oferecêssemos na rua seria bem feliz com a iguaria. Coisa de relembrar por muito, muito tempo.
Diz um recorte afixado na parede do restaurante que a Bibba trabalhou na gravação do Sítio do Pica-pau Amarelo na Rede Globo e que sempre cozinhou bem. Certo dia, entrou num concurso de culinária e levou o primeiro prêmio com um bacalhau que hoje está no cardápio com o seu nome.
A moqueca foi criação dela que, em comemoração ao aniversário de seu casamento, inventou de moquecar o bacalhau. O marido gostou demais (como nós) e pôs no cardápio também. Sorte tem quem pode voltar lá várias vezes e provar todos os pratos. Devem ser escandalosamente saborosos.
Uma história doce
Enquanto aguardávamos o prato, olhando em volta, em várias fruteirinhas à venda, compoteiras, bombonieres e até numa grande ânfora antiga de cristal com detalhes que parecem bordados dourados, vimos balas e bombons de diversos tipos e sabores. Ali, assim, dispostas as guloseimas prontas para serem devoradas. Depois descobrimos também um baleiro, daqueles que giram, com 18 tipos de balas diferentes.
Isso vem da sensibilidade e generosidade do Henrique, um homem cuja aparência indica cinquenta e poucos tantos anos. Quando criança ajudava a mãe a carregar as sacolas de compras de comida e cobiçava, como qualquer moleque, os doces do baleiro giratório da mercearia onde a mãe era freguesa. Percebendo que o menino olhava os pirulitos, a mãe pedia ao dono da venda que lhe desse um. O homem assim o fazia, mas sempre anotava na conta da mulher.
História comum do garoto de poucas posses que cresceu e virou empresário, agora ele tem também um baleiro que gira e oferece doces de graça à molecada (e até aos marmanjos) que por ali passam. Diz ele que a prática de dar balas lhe confere dádivas de São Cosmo e São Damião. “Quanto mais eu distribuo, mais eu recebo!”, conta sorridente o homem de bigode grisalho em cujos olhos ainda se vê o menino.
Meu marido ama sonho de valsa. Pois não é que o Henrique, desafiado a pegar um bombom que estava debaixo de muitos outros doces virou de boca pra baixo todo o conteúdo da enorme ânfora para alcançar o chocolate que o agradava?
Talvez por isso sentimo-nos mais contentes ainda de ter estado naquele lugar, de termos comido aquela comida e bebido daquele vinho. Porque ganhamos balinhas e bombons e soubemos histórias… Agora temos essa história pra contar.
Na saída, depois de tanta comida gostosa, recebemos a recomendação para uma breve caminhada a fim de ajudar a digestão. Devíamos tomar um café expresso de primeira, no PédiCafé. Obedecemos e foi ótimo! Fechamos bem um sábado em Pirenópolis.
Nessa noite, entramos despretensiosamente numa experiência que me rendeu a sensação de ter ido à casa de alguém amigo cuja esposa cozinha bem pra caramba. Se o cara vive de antiquário ou restaurante, desejo a ele que ambos deem certo sempre. Simples assim, só porque, nesse dia, eu construí uma memória afetuosa e isso é o que vale.
***
Serviço:
Antiguidades e Restaurante – O Bacalhau da Bibba
Rua do Rosário, 42-A (rua do Lazer) – Centro Histórico – Pirenópolis – GO
tel. 62 98600-2104
Pé di Café
Rua Aurora, 21 – Centro – Pirenópolis – Tel. 62 3331-2183