Depois da tarde fria, com um chuvisco paulistano mais que bem-vindo nesse tempo seco que estamos vivendo, no início da noite de ontem tive o privilégio e o prazer de poder assistir a arguição da dissertação de mestrado da chef de cozinha Patricia Rodrigues de Souza, na Puc-SP. O trabalho foi desenvolvido no programa de Ciências da Religião e teve como orientador o professor Dr. Frank Usarski.
Para uma iniciante nos estudos da gastronomia como eu, foi uma experiência enriquecedora, uma vez que o tema escolhido como objeto de estudo foi Religião e Comida – Como as práticas alimentares no contexto religioso auxiliam na construção do homem.
Patricia é professora de gastronomia da FMU em São Paulo. Eu a conheci na casa de amigos em comum no fim do ano passado quando, pela primeira vez, reunimos um grupo para confraternizar tendo como tema central a comida. A ideia partiu do Fernando que, além de oferecer a casa, sugeriu que cada casal fizesse uma preparação com uma história para ser contada. Tudo foi harmonizado com vinho que ele muito gentilmente ofereceu. Esse modelo foi depois repetido na minha casa e, na ocasião, até escrevi a respeito e publiquei fotos. Estamos agora na entressafra até que ocorra a próxima noite de “orgia gastronômica”.
Naquela ocasião, a Patricia fez um cozido a base de carne de tradição judaica. De sabor muito apurado, o preparo leva mais de sete horas para ficar pronto. Segundo explicações da chef, é uma preparação comumente servida no Shabat devido às suas características. É uma preparação que pode ser feita com antecedência e mantida em aquecimento, desde que respeitadas as regras estabelecidas pela religião. Para os judeus, no Shabat não é permitido cozinhar, nem aquecer os alimentos, o que não significa que serão comidos frios porque existem maneiras adequadas para mantê-los quentes.
Conversando com a Patricia entendi que sua atenção era muito voltada às questões que envolvem a comida e religião. Não só a comida e religião judaica, mas também os alimentos nas demais como o hinduísmo, islamismo, catolicismo e candomblé.
Durante a apresentação da dissertação essa paixão dela ficou evidente. O trabalho (estou com uma cópia em mãos, que ainda não consegui ler completamente porque tem 181 páginas e peguei com o Silas, que fez parte da banca da Patricia, ontem à noite), muito antes de todo aprofundamento teórico que é obrigatório para um bom mestrado, denota a ânsia infinda de uma pessoa encantada com a cultura alimentar de diversas tribos humanas. As religiões foram o viés escolhido para observar como esses diferentes grupos sociais se relacionam com a comida e compará-los, sem juízo de valor.
Muito instigante pra mim foi a matriz criada pela estudante na qual ela elenca sete grandes religiões (adventismo, budismo, candomblé, catoliciscmo, hinduísmo, islamismo e judaísmo) e compara, em cada uma dessas, o que ocorre diante do que ela chama de categorias alimentares na religião: jejum, dietas regulares, interdições alimentares, alimentos como símbolo específico, banquetes, oferendas de alimentos e sacrificio animal, regras na obtenção ou preparo e, por último, dietética associada à religião.
No mínimo é um assunto instigante que merece um olhar mais detido quando se estuda gastronomia, independentemente do seu objetivo ser abrir um restaurante, prestar serviço como banqueteiro ou, simplesmente, trabalhar na área. As diferentes formas com que cada cidadão (religioso praticante ou não) se relaciona com o alimento, a partir do momento que você vai atuar na área da comida, passa a ser um dos objetos da sua atenção também.
Uma das questões que a mestranda Patrícia se propôs a responder foi por que as religiões se utilizam de práticas alimentares. A resposta, apesar de todo o aprofundamento teórico, é difícil de ser dada “uma vez que os usos das comidas variam segundo as religiões, tempo e espaço”. Mas uma coisa é certa, há muitas funções para a comida quando ela está atrelada ao ambiente ou às práticas religiosas. Entre essas funções estão a partilha, hospitalidade, comensalidade e a sazonalidade. Para mim, entretanto, a mais relevante de todas as funções é a de garantir a identidade existente pessoas que pertencem ao mesmo grupo. Em resumo: “quem não come as mesmas coisas é certamente considerado diferente e, neste sentido, as práticas alimentares exercem a função de construir e representar identidades”.
Acreditando ou não em sincronia ou apenas levando em conta a associação de ideias, na última terça, 12/agosto, durante a primeira aula do semestre, o professor que apresentava o curso de Gastronomia aos novos alunos, falava sobre o quanto no Brasil os cursos dessa área são recentes. Segundo ele, a primeira graduação surgiu somente nos anos 90,o que faz com que ainda não tenhamos muitos mestres e doutores no assunto formados no país. Ontem, tornou-se mestra a Patricia, mais um talento dedicado a “engordar” os conhecimentos acadêmicos sobre comida. Ainda que sua dissertação se tenha dado a partir das Ciências da Religião, ela trata de cultura alimentar.
Parabéns, Patrícia! Que sua dissertação desperte em muitos as mesmas ou outras curiosidades que em mim despertaram. Mais que recebendo um título, você está contribuindo com a área da Gastronomia. E o que é melhor com dedicação e inteligência.