Eu faço parte de uma família de mulheres. O que quero dizer é que somos mais mulheres em casa do que homens. Minha mãe teve apenas irmãos homens, mas a partir da geração seguinte à dela, nasceram mais meninas que meninos na nossa família. Do lado materno, fomos três netas e um neto, esse rapaz teve um casal de filhos, mas minha irmã e minha prima tiveram apenas filhas, respectivamente três e cinco meninas. Uma das filhas da minha prima também teve três meninas…
Bem diferente da família do meu marido. Minha sogra teve dois meninos e três garotas. Mas, tem sete netos e apenas duas netas.
Comecei contando isso porque dizem que as mulheres têm mais fé ou são mais religiosas que os homens. Não tenho nenhuma prova disso, exceto o fato de que olhando bem rapidamente uma procissão, por exemplo, parece que há bem mais mulheres que acompanham do que homens. Mas isso pode ter outros motivos que não a religiosidade, talvez a questão de que pessoas do sexo masculino tem menor expectativa de vida. Uma vez que é bem notório que há muitas senhorinhas nas igrejas, talvez os homens, seus companheiros, já não possam mais acompanhá-las, muitos já devem ser falecidos. Até porque, os casamentos permitidos nas igrejas, até o momento, são entre homens e mulheres. A união de indivíduos do mesmo sexo ainda não foi plenamente aceita, de modo que é possível concluir que os maridos daquelas senhoras citadas já tenham, um dia, frequentado a igreja.
Mas a questão de hoje, definitivamente, não é estatística. É religiosa. As mulheres da nossa família foram ensinadas a ter fé. Nós cremos, talvez porque sejamos mulheres.
Estive na cidade de Fátima, em Portugal, neste mês de maio. Silas e eu fomos até lá, juntamente com um grupo de pessoas do I Congresso Lusófono de Ciência das Religiões, que promoveu essa viagem de Lisboa até lá bem na noite de 12 de maio, quando ocorre a Procissão das Velas. O dia de Nossa Senhora de Fátima é 13 de maio.
Não é possível contar de verdade, porque as palavras sempre serão poucas para descrever, a emoção que eu vivi ali.
Minha relação com Nossa Senhora de Fátima é antiga
Quando menina, eu fui anjinho da coroação de Nossa Senhora algumas vezes. Numa delas, já era bem mocinha até, devia ter quase 13 anos, eu fiz um solo no coro da coroação e pus uma flor na mão da imagem de Nossa Senhora. Posso dizer que isso foi um destaque e tanto, pra mim e para a Luke, minha amiga inseparável que teve o privilégio de coroar a imagem da rainha do céu naquela cerimônia.
Antecedendo ao dia da cerimônia de coroação de Nossa Senhora lá em Itu na Igreja das Redentoristas, transcorriam ensaios do nosso coral de crianças, sempre na casa da Dona Carminha, mãe da Maria Angélica, que morava ao lado do cinema, na rua da minha casa. Não sei dizer quantas crianças éramos, mas a Terezinha do Yakult, como era conhecida a senhora que nos ensaiava e que dava a vida por esses eventos, conseguia reunir muita gente, digo, muitas meninas. Não havia anjos meninos. Só meninas. Uns dois dias antes da coroação, a gente ensaiava dentro da igreja, isso era demais! Uma bagunça com todo respeito! Havia ainda o dia em que eram distribuídos, emprestados, os vestidos que os anjos usariam de cores diversas: brancos, amarelos, azuis, cor de rosa.
Confesso que sempre tive certos privilégios. Além de ser solista, eu também participava fazendo o ofertório durante a missa, o que era um papel muito importante e, para mim, sempre se escolhia um vestido entre os novos. De preferência azul. Eu só me lembro de usar um azul, bem novinho.
No dia 13 de maio ou na data escolhida para a cerimônia da coroação, minha mãe passava o vestido impecavelmente e meu pai me levava de carro para a entrada do convento das freiras que ficava ao lado da Igreja. Lá, nós, os anjos, ficávamos concentrados aguardando a hora de entrarmos triunfalmente, logo depois da missa, para cantar, prostrados com as mãozinhas unidas em oração em frente ao peito no altar de Nossa Senhora de Fátima.
Santuário de Fátima, procissão de velas acesas
Quando eu soube que iríamos ao Santuário de Fátima em Portugal para participar da Procissão das Velas não poderia ter ficado mais contente. Foi uma notícia que me deixou extasiada porque há anos eu tinha ouvido da Lúcia Salgado que ter ido a essa cerimônia havia sido uma das maiores emoções da vida dela.
Seria a segunda vez que eu iria a Fátima. Em 2002, eu havia estado lá, numa tarde muito chuvosa e, portanto, o espaço estava quase sem ninguém. Naquela ocasião eu conheci o Santuário, entrei na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, erguida em 1928 (que agora é considerada a igreja velha porque foi construída uma nova, bem maior). Fui acender uma vela em oração no lugar onde acreditam que tenha havido a aparição da virgem Maria para os três pequenos pastores: Lúcia, Jacinta e Francisco. Esse lugar se chama Capelinha das Aparições.
Antes de ter ido, eu tinha uma imagem na minha mente sobre esse lugar, fruto do que eu vira no filme O Milagre de Fátima, tantas vezes repetido na sessão da tarde das sextas-feiras santas durante a minha infância. Confesso que esse filme me causava medo, um temor religioso bem pouco saudável.
Desta vez, tudo foi muito diferente. Tinha tanta gente que, só para sugerir uma comparação, a área em que ficam os fieis aguardando a passagem da imagem de Nossa Senhora que passava em procissão precedida de porta-bandeiras representantes das paróquias é mais ou menos metade área externa do Santuário de Aparecida que tem cerca de 200 mil metros quadrados.
Imagine que quando chegamos era possível locomover-se. Na verdade, nesse tipo de evento, sempre é possível se locomover, porque há muita tolerância entre as pessoas numa ocasião como essa. No entanto, é difícil porque vai chegando tanta gente, tanta gente que só mesmo coração de mãe, neste caso da mãe de todos, para caber mais um. Cerca de 100 mil metros quadrados ao ar livre, completamente repleto de fieis, cada um com uma velinha acesa na mão.
Além disso, há a celebração. Os cantos são muito bonitos e o coral, do qual participa a Mena, a irmã do Eulálio, nosso anfitrião em Portugal, é muitíssimo bem ensaiado. Nada comparado à nossa naif forma de entoar cantos religiosos ensaiados no quintal da querida Dona Carminha.
Bom… a fé nesses lugares é transbordante. Se há quem não sinta, tendo a acreditar que deve ser um robô sem inteligência artificial, porque a coisa bate forte no peito da gente. Mexe com o coração que dispara e depois desacelera e bate em ritmo de calmaria, arrepia a pele, fecha a garganta, escorrem lágrimas.
Eu chorei copiosamente, um pouco envergonhada no começo porque estava com os amigos do Silas que, como ele, são estudiosos da ciência da religião, mas não necessariamente são religiosos. Sempre há um certo receio de como podemos ser vistos, uma bobagem, mas acontece.
Quando ficamos só nós dois (entre todas as demais pessoas, claro) e a imagem da minha querida velha conhecida e homenageada Nossa Senhora de Fátima começou a desfilar entre a multidão, não me contive. Deixei que a emoção tomasse conta de mim. Nessa hora, engraçado, eu pensava na minha mãe da terra, a dona Neuza. Ela parecia estar ali tão perto de mim, como se eu tivesse recebido mesmo o direito de ser filha de uma mãe bondosa, que me foi mandada como representante daquela outra mãe ali logo à minha frente na imagem da santa. Quem tem fé, sente. E é só, mas é grande o que se sente.
Peguei o celular e resolvi ligar para minha mãe. Só então vi que ela havia me ligado alguns minutos antes. Ela assistia ao evento pela televisão. Aí, ela chorava emocionada no Brasil e eu, em Portugal, mas unidas pelo coração. Surpreendente essa magia, não?
Para quem nunca foi a Fátima, espero que possa ir um dia, tenha a fé que tiver ou ainda que não tenha.
Por causa das milhares de pessoas ali reunidas, não é permitido entrar na Basílica e nem é possível se aproximar da capelinha das aparições. Mas a energia é inesgotável.
O céu estava limpo, com o cair da tarde começou uma noite limpa, não muito fria, sem chuva. Só aquela reunião de fé, de pedidos esperançosos, de agradecimentos infindáveis por graças recebidas.
Eu falei com Nossa Senhora mais uma vez como, pretensiosamente, faço sempre. Rezei e enchi minha alma de muita alegria. Saí de lá repleta, preenchida de bons sentimentos.
Essa viagem a Portugal só teve coisa boa. Nós, brasileiros, muitas vezes, não somos muito justos com os nossos colonizadores portugueses. Ranço de quem se sente menor, quase uma muleta para justificar os nossos fracassos atribuindo aos outros a culpa por nossos defeitos, a nossa incapacidade de lidar com nossas dificuldades e erros.
Para mim, Portugal é uma terra de gente hospitaleira, generosa, alegre, cheia de fé. Tá certo, eles explicam tudo em detalhes e ainda dão pormenores, mas isso faz parte da comunicação e de como acreditam que devem se comportar para bem receber as pessoas. Eu sou só elogios.
Que Nossa Senhora de Fátima nos proteja!