Na gastronomia do Brasil cabe tudo
Na culinária do Brasil cabe tudo! Somos um povo mestiço de alma e coração, de forno e fogão.
Não dá pra falar de comida brasileira sem pensar na mestiçagem do sabor e na alquimia de elementos que vem de diversas partes do mundo porque o Brasil é um país plural feito, no início, mas só no início mesmo, de índios, portugueses e negros. Prova disso é que já se vão 400 anos que os holandeses aportaram por aqui e no nosso Nordeste de Recife e Olinda deixaram não só olhos azuis, mas um pedaço do seu jeito de comer. Comida é cultura afinal.
Só que a coisa não para por aí. A história conta, ainda que em tom de romance, que com a Corte Real vêm os costumes culinários mais refinados. Só que comer, a gente sempre comeu. Então, tudo é questão de mistura e aprendizado mesmo.
Que seja só para dar ares de conhecedores da história, lá pelo XIX chega a família real e, mais uns anos, a independência e a libertação dos escravos. Nem por isso quem está aqui resolve ir embora, porque da América à África há um Atlântico a percorrer. Mas a ideia é branquear o povo do Brasil e assim se abrem as fronteiras para a vinda das peles claras. Com elas vêm também a boca e o estômago de italianos, espanhóis e alemães a quem logo se juntam outras bocas e novos hábitos de japoneses, sírios e libaneses. Isso é o início dos 1900. E foi nesse século, o de número vinte e das grandes guerras, que vieram judeus de diversas nacionalidades, vieram árabes, armênios, russos, romenos, poloneses, húngaros, chineses, coreanos… Foram vindo… E têm vindo… Já no 21, somos agora haitianos, sírios, argentinos, chilenos, bolivianos, somos muitas nacionalidades…
Quem não tem um amigo de cada lugar e se diz brasileiro não tem amigos, não se abre e perde o melhor. Essa é, pois, a nossa grande graça.
Aqui, entre trancos e barrancos, vivemos lado a lado. Nem sempre cordatos, nem sempre cordiais, já nos avisava há tempos Gilberto Freire. Triste é que, ainda hoje dá pra separar a casa grande da senzala sem qualquer dificuldade, o que não dá pra separar é o arroz do feijão. O que aqui se põe no prato é igual com diferença.
No Brasil, o melhor peixe é do pescador, a melhor fruta é a do quintal. O melhor doce é o daquela senhorinha mineira que mora virando a esquina e naquele “conventinho” de freiras enclausuradas tem a melhor bala de café do mundo. O queijo fresco da dona Maria custa só um real e, psiu!, não conte pra ninguém!
E não é que, para além disso tudo, ainda por essas bandas tem cozinha internacional?
É que ali pelos 70, quando a bossa era nova, chegam por esses lados, uns chefs de nome afrancesado. Vêm cá para nos dizer como é que se cozinha com toque refinado. Vêm de manteiga e nouvelle cuisine pra ensinar o que se come em padrão de quem anda de avião, porque país que se preza tem Hilton, Ritz e Copacabana Palace.
Não é desfeita nem aporrinhação é que no Brasil cabe tudo. A nossa panela é um caldeirão!
Brasileiro é conservador em tanta coisa, mas no prato, pelo menos na formação, não. A coisa é mais ou menos assim, se vem novidade e é gostoso, bota aí que a gente come com feijão. Ou põe leite condensado, que tudo sempre fica bom. Ah! Como se come açúcar nessa terra de cana!
Muito se fala de quem vem e fica, mas a gente viaja também. Não nascemos passarinhos, mas foi Dumont quem inventou o avião. E ele não era brasileiro?
Quando a gente manda o filho de intercâmbio ele não aprende só inglês ou alemão. Vai que volta com manias e predileções que por aqui não aprendeu. Quanta vez não traz além do chapéu do Mickey e do novo celular, uma garrafa de uísque ou um potinho de caviar? Um queijo da Serra da Estrela, um chocolate ao leite de vaca holandesa.
Difícil é pensar que quem se junta por mais tempo que um quilo de sal não leve e nem deixe um pouco de si, e é na comida que, apesar da resistência, vem a experiência.
Depois de uma pincelada de história, já é hora de dizer que a gastronomia virou febre por aqui. É tanto curso, programa de televisão, tanta revista, tanto site, blog e gravação que no youtube tudo se acha, mas o comer de todo dia, o que faz o nosso ganha-pão, é na marmita ou no quilão.
Ingredientes não nos faltam. Também não nos falta imaginação. A questão é por no prato o que alimenta, sacia e faz feliz já que comer é o prazer que nos resta e nos restaura.
Estudar num só período cozinha regional brasileira e cozinha internacional é ter a oportunidade de enxergar nuances antes improcedentes. Não havia dúvidas, só a certeza ignorante de que tudo sempre tinha sido assim, de um certo jeito, e estava ali desde quando nem se pensava. Então o que parecia sempre ter sido passa a ter origem, motivo, razão, lugar, influência, sabe-se lá o que mais. Tudo passa a ser reflexão. E o ato de comer nunca mais será o mesmo. O de cozinhar também não.
Entre semelhanças e diferenças, um novo mundo de oportunidades se tece numa rede inesgotável de paladares, texturas, aromas, cores e, principalmente, histórias, influências e tendências que fazem da culinária e da gastronomia uma coisa só, tão rica e generosa que só um Brasil inteiro pra caber não é o bastante.
Não é preciso vasculhar baús, nem remexer toda a história para perceber o que está na cara. A gente come tudo junto e misturado, mas o nosso paladar está ainda em formação porque somos um povo que ainda não está pronto, graças a Deus! Brasileiro é assim e é assim que tem que ser, mas como é que é mesmo? A gente é mulato, branco, preto, japonês mesmo que coreano ou chinês. A gente é índio mesmo sendo boliviano e é gringo e pronto se vier com sotaque.
Brasileiro come feijão, arroz, mandioca, abóbora, amendoim, milho, banana, manga e goiaba e tem um monte de fruta de nome esquisito que a gente também apreciaria se encontrasse por aí, tanto nacional quanto importada. Come peixe, carne até morrer e quase todo dia, come macarrão mais que na Itália, come sushi até de morango e pizza de brigadeiro. A gente ainda come esfirra, quibe e coxinha e todos parecem da mesma família, só que não!
A mixórdia daqui é só pura confusão, nada tem de comida malfeita como quer o dicionário, ali por sua terceira ou quarta interpretação. O que tem de Brasil nesses brasis que o prato difere enquanto iguala, é o que comemos nós que somos preto, índio, branco e quem mais veio depois, numa farta e pra lá de promíscua miscigenação. Mas, se acaba a ideia para a próxima refeição, a gente faz um virado com o que tem na mão. Bota farinha, um temperinho e tudo fica bom.
Esse texto é uma adaptação (com outro final) do que escrevi para o Projeto Integrado Multidisciplinar – PIM que encerrou as atividades do quarto e último semestre do curso de Gastronomia da Unip – Universidade Paulista, na última segunda-feira, 5/dez/2016. Depois de todo esse palavrório, vinha um menu com harmonização, fichas técnicas e justificativas para o trabalho, que aqui não cabem ser publicados.
Dedico essa publicação, em especial, aos meus colegas de grupo Cauê, Nathália, Santília e Elaine, aos demais colegas da classe atual e das demais classes que participei na UNIP (foram 3 diferentes, pelo menos); aos nossos professores e a todos os profissionais que vivem de fazer comida no Brasil.
Virô Brasil!
Texto originalmente publicado em 07 dez 2016 no Blog da Gavioli. Esse artigo também foi publicado nos portais:
- Plena Mulher, coluna Gastronomia & Hospitalidade, por Clau Gavioli em 26/setembro/2017.
- Itu.com.br, coluna Gastronomia & Hospitalidade, por Clau Gavioli em 2/março/2017.
Aee clããuudiiaaa! hahahaa lindo demais! adorei a homenagem! muito bom aprender com você e poder compartilhar esse tempinho juntos! Beijo Cauê