Falar em “vinho natural” está na moda, mas a verdade é que não existe (ainda) uma linha divisória inquestionável sobre o que torne um vinho antinatural. A melhor forma de decidir sobre essa “naturalidade” é conhecer o produtor e sua filosofia.
Graças à pandemia, as oportunidades para isso têm pipocado. Nos próximos dias é a vez do Novo Chile – uma agremiação de pequenos produtores chilenos que chega com uma agenda repleta, vinhos interessantíssimos com desconto promocional e até um curso de formação.
O vinho natural e o “desnatural”
No final de 2016, estava já de malas prontas para voltar ao Brasil e deixar para trás o Uruguai e seus vinhos. Numa espécie de despedida, aproveitei a visita regular dos estudantes de sommelierie do Colégio Gato Dumas, onde estudei, e revisitei a bodega Pablo Fallabrino – que então se chamava Viñedo de los Vientos. Ainda lembro meu espanto quando Pablo, o proprietário-enólogo-surfista, comentou que estava produzindo um vinho fermentado com leveduras indígenas e sem adição de sulfitos. “Cara doido”, pensei comigo.
Na escola haviam me ensinado que as leveduras indígenas devem ser prontamente assassinadas na colheita, mediante a adição de sulfitos, para que não se corra o risco de estragarem o vinho. Para aqueles menos familiarizados com o processo de vinificação, basta saber que as leveduras são as responsáveis pela fermentação, que transformará o açúcar em álcool, o suco de uvas em vinho. Confira como é feito o vinho neste vídeo de 10 minutos.
Já os encantados pelo vinho sabem que, fosse tão simples a coisa, não teríamos tantos vinhos tão variados por aí. Esse buraco é muito, muito mais em baixo e nem eu, na época já diplomada, tinha a real noção dessa fundura. Hoje já sou bem mais humilde.
Foi apenas na produção do podcast #17 – Vinho paz e amor que tomei conhecimento do movimento do vinho natural. Ainda incrédula, comecei a perceber que Fallabrino não era doido, era antenado! Havia um mundo de possibilidades de vinificação fora da cartilha que eu tinha aprendido na escola – e esse mundo de possibilidades não se restringe à vinificação, mas abarca toda a cadeia produtiva – como é o caso com QUALQUER bem de consumo. O vinho não é exceção.
Talvez por isso – por ser essa rede intrincada de filosofias e possibilidades – ainda me incomode o rótulo “vinho natural”, implicando que outros vinhos sejam desnaturais. Esse tema complexo é assunto para vários artigos e podcasts ainda por vir, mas quem quiser entender a teoria da discussão, vale conferir aqui. Ainda que esse episódio tenha sido duramente criticado por uma produtora – 01 só – , o fato de eu ter sido recebida de braços abertos por um “natureba-raiz” como Eduardo Zenker apenas confirma minha intuição: a grande maioria dos produtores pequenos, se não todos, são bem naturais. Teve também podcast com o Zenker.
Novo Chile e seus vinhos “naturais”
Todo esse preâmbulo foi para falar sobre um grupo de produtores chilenos “naturais” chegando com uma proposta super interessante nesses meses de novembro e dezembro/2020. O Novo Chile – uma associação de 8 pequenos produtores que investem em modelos de produção mais livre e sustentável, valorizam terroirs selvagens ou mesmo produzem a partir de videiras centenárias, um patrimônio vitivinícola até então desprezado.
Apesar de pequenos, esses produtores vêm conquistando reconhecimento mundial. Todos estão classificados entre as 125 melhores do Chile pelo crítico britânico Tim Atkin, além das várias distinções que receberam de Patrício Tapia, autor de Descorchados e James Suckling.
Neste ano tão atípico, a associação de produtores adaptou sua estratégia anual de marketing e traz uma agenda recheada de encontros virtuais com os produtores, degustações e até um curso de formação – a Wine Academy
Os eventos são quase sempre gratuitos, mas quem ficar tentado a comprar os vinhos comentados conta com 15% de desconto utilizando o cupom SIMPLESVINHO15, enquanto durar a promoção.
Rosé de Sauvignon Blanc ?
Eu mesma promovi uma degustação virtual com um deles – David Giacomini, da La Recova. O vinho que escolhi foi o Obstinado rosé de Sauvignon Blanc – a mesma uva do Sancerre, que produz vinhos brancos, como já comentei aqui. Não bastasse essa “bossa”, orgulhosamente explicada por Giacomini ontem, trata-se de um estigmatizadíssimo vinho doce. Semi-doce, na verdade, mas acompanhado de uma acidez tamanha que reduz significativamente nossa percepção de doçura e o torna um super curinga nas harmonizações.
Meu próximo evento será em 04/dez, e o vinho escolhido foi um Pinot Noir (uva preferida da vez) de terroir vulcânico (obsessão da vez) da Patagônia (amor antigo), mas a programação de encontros é extensa e variada, e pode ser conferida aqui.
Oito vinícolas do Novo Chile
Vinícola Villalobos – Com videiras centenárias que crescem e frutificam soltas no meio do mato, a Vinícola Villalobos se destaca pelo vinhedo mais próximo de seu estado natural, sem intervenção humana e colheita feita com escadas em cima das árvores. Para beber: Villalobos Carignan (92 pontos na escala Robert Parker e considerado um dos melhores varietais da uva pelo Guia Descorchados), Lobo Carménère e Zorrito Salvaje.
Vinícola La Recova – A La Recova fica na região mais fria do Vale de Casablanca e tem suas plantações em ladeiras empinadas de tirar o fôlego, com videiras separadas por apenas 80 cm. É o vinhedo de Sauvignon Blanc de maior densidade de plantação do Chile. Para beber: Avid Sauvignon Blanc (91 Pontos no Guia Best of Chile) e Obstinado Rosé Demi-sec.
Vinícola Laura Hartwig – Localizada no Valle de Colchagua, é uma das mais premiadas da atualidade. Tem 145 hectares plantados de Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Merlot, Carménère, Malbec, Syrah e Petit Verdot, com uma viticultura sustentável e de baixo impacto. Para beber: todos os seus vinhos receberam pontuações acima de 90 em listas e guias. Atenção ao Laura (96 pontos no James Suckling e considerado um dos 100 melhores vinhos do Chile pelo especialista), Laura Hartwig Edición de Familia (também no Top 100 James Suckling), Laluca Malbec e Laluca Merlot.
Vinícola Alchemy – Eleita a melhor vinícola de pequenas produções do Chile e detém o melhor Carménère no Catad´Or de Santiago. Para beber: Alchemy Gran Cuvee (93 pontos no guia James Suckling) e Parroné Syrah.
Vinícola OWM – Uma vinícola de pequeníssima produção, com colheita, desengace e vários outros processos feitos manualmente. Está localizada no Vale de Panamá, no Vale de Colchagua, local que possui um microclima que a diferencia dos demais vinhedos da mesma região. Para beber: OWM Handmade, um blend único de seis castas com estágio de 15 meses em barricas de carvalho (90 pontos James Suckling) e Pillo de Panamá, blend de Cabernet-Syrah criado em tanques de cimento (92 pontos James Suckling).
Vinícola BOWines (Best Origin Wines) – Possui um belíssimo trabalho de resgate de castas patrimoniais, trabalhando principalmente com videiras centenárias de Carignan da região do Maule e que sobreviveram anos sem manejo. Para beber: todos os seus vinhos são premiados, com destaque para o Carae (revelação da Guia Descorchados, 93 pontos no James Suckling, 90 Tim Atkin e 90 Robert Parker), Malcriado (blend de Cabernet Sauvignon e Carignan), Fillo Carignan e Fillo Malbec.
Vinícola Erasmo – Esta vinícola é de propriedade do Conde Francesco Marone Cinzano, com tradição familiar no ramo da vitivinicultura e também responsável pelos Brunellos di Montalcino da grande Col d’Orcia. No Maule, produz vinhos de tratamento orgânico e ao estilo do Velho Mundo. Para beber: Erasmo 2019 (91 pontos James Suckling e destaque na lista dos Melhores Blends do Chile pelo Guia Descorchados), Erasmo Rosé de Mourvedre (Melhor Rosé do Chile pelo Guia Descorchados) e Erasmo Garnacha Alicante.
Vinícola Trapi – Localizada no Vale de Osorno, na Patagônia Chilena, produz vinhos frescos e elegantes em um dos territórios mais extremos e frios do país. Seu trabalho é artesanal: colheita e seleção dos cachos são manuais, uso de pisa pé e de leveduras selvagens, além de engarrafamento sem filtração. Para beber: Trapi Hand Made 2017 (91 pontos Tim Atkin e 93 pontos no Guia James Suckling, considerado um dos 100 melhores vinhos do Chile pelo crítico) e Pinot Noir Savage.
Fotografia: Fabiana Knolseisen
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