Comprar esse vinho 85 RP ou esse outro, 87 RP? Ok, os números nas garrafas de vinho nos ajudam a assimilar a complexidade de informações escritas (e às vezes omitidas) nos rótulos e facilitam nossa decisão de compra, mas será que deveriam?
O que significam as siglas RP, JS. JR. WS, D nas garrafas de vinho?
As siglas que se vê em algumas garrafas de vinho – RP, JS. JR. WS, D etc – são as iniciais dos críticos que avaliaram esses vinhos e lhes concederam a pontuação que se lê na sequência. Alguns desses críticos são:
RP: Robert Parker
JS: James Suckling
JR: Jancis Robinson
WS: Wine Spectator
D: Descorchados
AD: Adega
No episódio SV#86 o mestre Alejandro Vigil nos contou sobre sua emoção ao saber da pontuação 100 RP recebida por um de seus vinhos. Disse que estava dirigindo, encostou o carro e chorou por 1h (ouça aqui).
Claramente, esse foi um reconhecimento importante para ele, e esses números mágicos já influenciaram muitas de nossas compras. Mas como surgiram esses sistemas?
As pontuações chegaram para facilitar as escolhas
A escala de 100 pontos foi popularizada pelo então advogado e enófilo americano Robert Parker nos anos 1970 – uma época em que os americanos “descobriram” os vinhos finos mas ainda se intimidavam com seus rótulos.
Dos críticos que mencionei acima, todos, exceto a Jancis Robinson, usam a escala de 100 pontos. Ela usa uma escala de zero a 20,criada pelo professor Maynard da UC Davis e que é considerada mais técnica. A ideia, no entanto, é a mesma.
O sistema facilitador deu “match” porque o cérebro humano tem compulsão por organizar a informação que nos rodeia. Buscando tornar o mundo mais palatável e compreensível, processamos informações de forma seletiva, desprezando “arestas” que às vezes parecem impedir o perfeito encaixe das peças do quebra-cabeças.
A melhor forma de evidenciar esse processamento seletivo de informações é fazer um exercício em que, na média, 70% das pessoas falham. Faça o teste: clique no link e conte quantas passes os jogadores de branco fazem (a resposta correta é 16, esse teste foi criado por Daniel Simons em 1999).
De forma semelhante (não quero estragar o teste!), acabamos adotando a pontuação colada na garrafa como verdade e desprezamos alguns detalhes técnicos, que comentarei a seguir.
2 + 2 = 5 – uma conta que não fecha
Nenhuma das escalas começa do zero. A que a Jancis usa começa, de fato, em 12, e corresponde a um vinho com defeito ou desbalanceado. Um vinho médio é nota 15, fazendo com que apenas 25% da escala seja útil.
Já a escala de 100 (vou me concentrar na escala RP, a mais famosa) começa, de fato, em 50. Adicionalmente, a faixa de pontos de 50 a 74 corresponde a vinhos “não recomendados” – ou seja: assim como acontece com a escala JR, apenas 25% da escala é útil.
Como engenheira, me chama a atenção também a graduação da “não recomendabilidade” dos vinhos, sendo supostamente um vinho nota 50 mais “não recomendado” que eu um nota 74.
Onde estão os vinhos 74 pontos RP ou menos?
Já se perguntou por que nunca vemos esses vinhos por aí?
Há 2 possibilidades: a) esses vinhos não foram avaliados pelos críticos ou b) o produtor não se animou a comprar as etiquetas de pontos por entender que não impulsionariam as vendas dos vinhos.
E se você se arrepiou ao ver a palavra “comprar” no parágrafo acima: sim, os críticos vendem essas etiquetas – o que certamente não ajuda a causa do conflito de interesses que paira sobre as avaliações.
E sim, claro que essas etiquetas incrementam o preço do vinho para o consumidor final, normalmente de forma desproporcional e sem necessariamente agregar valor.
Avaliações colaborativas
Além da crítica especializada, aplicativos populares como o Vivino permitem que consumidores comuns avaliem os vinhos que provam através de um sistema de 1 a 5 estrelas, tipo Trip Advisor ou Booking.
Pelo lado bom, o poder combinado de mais de 23 milhões de usuários já catalogou e avaliou mais de 1,4 milhões de rótulos – e esse número cresce diariamente, ao passo que os críticos avaliam menos de 20% dos vinhos disponíveis no mercado.
Por outro lado, qualquer usuário de Booking já reparou nas discrepâncias das avaliações – que no caso da avaliação de uma acomodação recai muito mais nas diferenças de expectativas que nos gostos pessoais e experiências, como ocorre com os vinhos. Segundo o pessoal do Vivino, na média, as avaliações feitas pelos usuários leigos se correlaciona bem com as dos críticos, com as vantagens de não terem “papas na língua” e nem interesses ocultos em suas avaliações.
Interesses conflitantes e preferências pessoais?
A influência das preferências pessoais na avaliação de vinhos é inegável. Ainda que se argumente que avaliadores treinados sejam capazes de isolar fatores como o nome, tradição e a importância do produtor em suas análises, também é inegável a alavancagem experimentada pelos cortes bordaleses graças ao encanto que provocavam em Robert Parker. Alguns mais rancorosos chegam especular que essa preferência pessoal moldou o atual cenário mundial.
Somando a esse fator pessoal, há que se lembrar que vinhos, exceto os altamente pasteurizados, são seres vivos e garrafas de uma mesma safra podem apresentar grande variabilidade ainda que tenham sido armazenadas corretamente (o que é bem difícil garantir numa longa cadeia de distribuição). Já vi duas garrafas de uma mesma adega serem abertas simultaneamente e mostrarem diferenças sensoriais importantes.
O próprio Robert Parker, considerado um degustador excepcional e que se gaba em lembrar de todos os vinhos que já provou e das notas atribuídas, falhou redondamente ao tentar identificar às cegas vinhos da famosa safra 2005 (não soube do babado? Contei essa história aqui).
Finalmente, apesar dos códigos de ética em vigor, a sombra do conflito de interesses sempre paira sobre a cabeça dos avaliadores de vinhos. Não há grande número de escândalos envolvendo a indústria, é verdade, mas um breve folhear das revistas que publicam avaliações sobre vinhos mostram que seus os anunciantes não são vendedores de roupas…
Conclusão
Continuaremos reparando nos pontos na garrafas (e nas avaliações do Vivino) – me parece impossível fingir que elas não existem ou mesmo ignorá-las, ainda que num exercício consciente, no momento da decisão de compra. Meu intuito com este artigo foi apenas tentar diminuir a importância que damos a esses números, contar histórias e enfatizar o componente humano do processo. No final do dia, o importante é desfrutar.