Na estréia da coluna, mês passado, ilustrei com uma foto minha com uma garrafa e a legenda: ‘Dia que aprendi que Sancerre AOP pode ser tinto e não precisa estar escrito no rótulo’. Queria explicar melhor essa história hoje. (Não viu a coluna? Confere aqui)
Sancerre é o nome de uma comuna no departamento de Cher, às margens do rio Loire, na França. Já Sancerre AOC é uma denominação de origem controlada (em francês Appellation d’origine contrôlée) – um nome que pode ser dado a produtos originados na região (que é delimitada e inclui, além da comuna de Sancerre, algumas outras comunas vizinhas) que obedeçam às regras de controle definidas na regulamentação específica. Tá, e por que o drama?
Sancerre tinto?
Não é necessariamente um drama, mas foi um choque. Desde de 1936, a região pode produzir vinhos brancos chamados de “Sancerre AOC”. Não é qualquer vinho branco e também não é qualquer lugar na região. Nem é de qualquer jeito. Tem as tais regras a serem seguidas. As regras mudam – por exemplo, desde meados dos anos 1990 os produtores não podem indicar o nome do vinhedo no rótulo dos vinhos. A região muda – 2.600 ha foram incluídos em 2006. A uva, no entanto, nunca mudou. Sancerre branco é sinônimo Sauvignon Blanc. Foi só em janeiro de 1959 que a regulamentação passou a incluir o Sancerre Rouge – tinto, à base de Pinot Noir. Mas ninguém nunca fala nisso.
Ok, até comentam que a região produz algum Pinot Noir – cerca de 20% da produção – mas não são os tintos que fazem a fama de Sancerre. Daí minha surpresa ao abrir o vinho Sancerre que comprei e descobrir que era tinto! Pela lógica de defesa do consumidor e pelas probabilidades, deveria estar destacado no rótulo, em letras garrafais, que esse é um vinho tinto, concorda? Não na França! Por essas e outras os franceses são tão fascinantes… Deixo aqui um link para a loja em que comprei – ou não tem mais o tinto ou até eles na loja foram enganados! A garrafa é idêntica!
A função da D.O. – denominação de origem
Contei essa história toda para mostrar que às vezes a gente erra mesmo com vinho. Feio. E tudo bem. Já falei que precisaríamos de 5 vidas para saber tudo sobre vinho mas isso é um chute. Desconfio que não seria suficiente. Note ainda que estamos falando do tal “velho mundo” e, mais especificamente ainda, da França: o “decano” do Velho Mundo. Ultra estudada e ultra regulada.
A razão de tantas regras é manter, ou ao menos tentar, um nível de qualidade e estilo pelos quais as regiões são conhecidas para que consumidores não tenham desapontamentos como esse meu. As regras costumam estipular quais as variedades de uvas podem ser produzidas em cada região, condições para a produção – tanto das uvas quanto dos vinhos, volumes a serem produzidos (principalmente para manter os preços elevados) e informações que podem ou devem constar no rótulo.
Assim, a menos que você seja “sorteado” como eu, ao abrir seu Sancerre você vai encontrar um vinho cor amarelo palha, seco, com aromas cítricos, groselhas e notas verdes, especiadas e minerais. A acidez é alta e o corpo meio leve (se ainda não está muito familiarizado com esses termos, confira o podcast e aprenda a degustar como um profissional aqui). Prepare o bolso: dificilmente encontrei um Sancerre abaixo dos 15 euros. Mais econômicos, os Sauvignon Blancs do nosso vizinho Chile podem ser uma ótima forma de se familiarizar com a casta. Procure os de clima frio, no Vale de Casablanca, para uma experiência mais “a la Sancerre”.
O gato e o Sauvignon Blanc
Outro lugar para encontrar bons Sauvignon Blancs é a Nova Zelândia – único produtor do Novo Mundo a se colocar no mapa rivalizando uma tradicional região francesa. Apesar do clima frio, os vinhos daqui expressam aromas mais intensos e frutados, com destaque para maracujá e goiaba. Procure pela região de Marlborough. Aproveite para esquecer a rolha e perder o preconceito com os vinhos de tampa de rosca: os ótimos e frescos exemplares neozelandeses são comercializados unicamente neste formato. Alternativas mais econômicas num estilo mais tropical podem ser encontradas na vizinha Argentina.
Quando estiver com sua taça de Sauvignon Blanc na mão, aproveite a oportunidade e tente identificar aromas de “xixi de gato”. Esse é um famoso descritor aromático típico dos Sauvignon Blanc. Como gateira familiarizada com a limpeza das caixas de areia, eu discordo fortemente mas a explicação é científica: está num tiol – o composto 4-mercapto-4-metilpentano-2-1 (4MMP para os íntimos), o mesmo responsável pelo aroma de folha de amoras.
O composto está presente tanto no vinho quanto na urina dos bichanos, mas a chave para a felicidade está na concentração: uma pitada produz aromas que evocam um paraíso tropical, enquanto uma “pitada e meia” te faz chorar – literalmente.
Outro “aroma” controverso e também típico da Sauvignon Blanc é o “sovaco suado”. Outro tiol: o 3-mercaptohexyl acetato (3MHA para os íntimos). E mais uma vez, a chave é a concentração. Responsável pelo delicioso aroma de maracujá em baixas quantidades, evolui para o sovaco suado em mais altas concentrações.
E se você ainda nem conhece esse tal Sauvignon Blanc mas já está preparando sua estratégia de fuga para o caso de se deparar com um, calma. Eu sei: essa coisa do tiol e as mercaptanas soa horrível, mas creia-me: neste exato momento tem um bando de gente estudando formas de garantir que esses aromas se apresentem em nossos vinhos. Na dose exata, claro!