As pessoas sempre me perguntam como eu, uma mulher brasileira, baiana, que iniciou sua vida na dança, cheguei até o trabalho de gastronomia junto com pessoas refugiadas na Itália. E a história me enche de orgulho e paixão, pois representa a força que a culinária tem em integrar os povos.
Cheguei a este país que hoje vivo na companhia de um grupo de dança, liderado pelo primeiro homem negro brasileiro a se apresentar fora do Brasil. Em uma da várias apresentações que fazíamos ao redor de toda a Itália, comecei a conviver com diversos coletivos de cultura, incluindo um que pesquisava o povo refugiado que aqui fez sua nova casa.
E aí eu pensei, que devia, ou melhor, que tinha necessidade de construir alguma coisa junto a essas pessoas, porque via o quanto era difícil sair das sombras as que estavam submetidas. Passei a conviver com os refugiados que estavam à margem da sociedade e isso me tocou muito. Foi aí que enxerguei a necessidade de fazer alguma coisa e pensei logo na dança! Porque era o elemento que conhecia de maneira melhor, já que ela representa 40 anos da minha vida. Mas se fosse através da dança, ia ser muito limitador já que muitas culturas que não a aceitam. Os homens não dançam ou dançam de uma outra maneira, por exemplo. E isso seria limitador! Então tive de buscar um outro elemento que congregasse a todos e todas.
Me lembrei da festa dos povos, uma festa muito tradicional aqui na cidade de Balí e que reúne multidões todos os anos. E, para mim, a parte que me é mais atraente é a parte gastronômica. Enxerguei que, através da gastronomia, qualquer pessoa pode se expressar. Eu percebi que as pessoas imigradas, quando elas cozinham, quando elas compram a matéria prima, quando elas compram os ingredientes para cozinhar e que cozinham para outros, elas vão buscar o que tem lá no interior delas, nas entranhas, elas vão buscar essa memória antiga. E isso é de muita força! Porque é uma memória coligada a estar na mesa ou a cozinhar com a família, então é algo que traz uma força muito grande!
É como se do ponto de vista psicossocial as pessoas fossem lá no interior delas pegar essa força coligada a lembranças da mesa, do encontro com as pessoas mais antigas, dos conselhos, aos momentos alegres, sentados na mesa com a família, vai buscar essa força ali e essa força te dá um empurrãozinho para poder viver o nosso presente, em uma realidade totalmente diferente.
E compartilhar a história, a vida dessas pessoas durante um almoço ou jantar que elas preparam nos faz sentir um pouco do que elas sentem. A cada dia ao lado dos refugiados é uma nova memória que ganha vida e atinge novas pessoas através do paladar, da escuta e da fala. É algo maravilhoso, de uma riqueza singular!
Sobre a chef Ana Estrela – brasileira, baiana, dançarina e presidente da Associazone Culturale Origens, em Bari, na Puglia, Itália. Ela é autora de Ethnic Cook – Sapori e storie dal mondo, um livro de receitas resultante de um projeto que nasceu da ideia de que a inclusão passa do convívio de sabores que guardam vestígios de saberes, costumes, tradições. Teve seu trabalho reconhecimento com menção honrosa no Prêmio Mundial de Culinária Basca 2021.
Ouça o podcast Minestrone com a convidada chef Ana Estrela: Comida é memória e ancestralidade.
Ah! E tem o podcast sobre Comida de Refugiados também.