Revista Bem Mulher, edição número 10
Na sexta passada foi publicada a décima edição da revista Bem Mulher. Na coluna de Gastronomia & Hospitalidade um pouco da minha relação com os cadernos de receitas. Sou louca por eles! Eu me lembro de muitas histórias em que essas anotações sobre como fazer um determinado prato foram mais do que simples folhas sobre as quais se escreveram ingredientes e preparos. Eles carregam emoções que, muitas vezes, nem nos damos conta…
tags: caderno de receitas, lembrança, memória, modo de fazer, #revistabemmulher
Gastronomia & Hospitalidade
Cadernos de receitas
Histórias escondidas e muitas vezes nunca reveladas
Minha mãe tem tantos cadernos de receitas, que já perdi a conta. Alguns deles ou quase todos, começaram de um jeito bem organizadinho, com divisão para doces e salgados, título em caneta vermelha e separação entre os ingredientes e o modo de preparo. Depois de algum tempo passam a ter o jeito dela de escrever as receitas: letra corrida, informações um pouco desordenadas, sem separação de linhas e tudo numa só cor de caneta, se começa azul, assim também termina.
No entanto, há informações que nunca faltam. O nome da receita, ingredientes e modo de preparo são obrigatórios, uma vez que receitas culinárias são um gênero textual, ou seja, todos têm basicamente a mesma estrutura. Nos cadernos da mamãe também há, em cada nova receita, a indicação de onde ou de quem ela veio, na maior parte das vezes entre parênteses. Não tem data. Se tiver, é fato raro.
Se todos os cadernos de receitas trouxessem datas precisas, ah!, teríamos, sem dúvida alguma, farto material de pesquisa sobre a comida e a hospitalidade na casa das pessoas. Seria, arrisco dizer, mais fácil contar a história da comida. Isso porque os livros de receitas são muito diferentes dos cadernos delas. Os primeiros são instruções muitas vezes técnicas sobre como preparar um determinado prato: uma lasanha, um bolo, um assado, seja lá o que for. Já nos cadernos estão os preparos que foram escolhidos por seus donos e donas que deles se encantaram por algum motivo.
Não importa se foi o sabor da moqueca da dona fulana, a fama do pato que é preparado no restaurante estrelado, o cheiro da torta de maçã da vizinha ou até mesmo aquela vertente de água na boca quando a gente viu um preparo feito na televisão. O fato é que os cadernos de cozinha são o resultado das escolhas que fazemos com os sentidos: paladar, principalmente, olfato, visão e audição. São os nossos sentidos que nos levam a eleger uma determinada comida para que ela faça parte do rol de receitas que estarão para sempre no nosso caderninho encapado com tecido que fica numa gaveta do armário da cozinha.
Qual é a casa que não tem um? Se não tiver, seja lá qual for o estado do exemplar, é uma casa sem sabor, ou melhor, sem preferências de sabor. Quase sem alma!
Conforme os cadernos vão sendo usados, eles vão ganhando alguma farinha, uns respingos de óleo, chocolate em pó e aquele amassadinho na orelha inferior onde a gente puxa a página para virar.
Como disse, minha mãe tem muitos cadernos de receita, muitos mesmo! Mais de 10, de 15, de 20, talvez. Não são livros, são cadernos que contém manuscritos feitos por ela e, às vezes por outra pessoa que escreveu uma receita especial. Também tem recortes soltos de receitas de jornais ou revistas e outros colados. Quase não há figuras. Curioso e bonito é que esses cadernos têm tanta história que conforme a gente vira as páginas pode encontrar um rabisco feito por um dos filhos (eu, meu irmão Júnior ou minha irmã Cristina), ou netos (minha mãe tem quatro meninas e um menino) que conta mais ou menos a idade que a criança tinha e, portanto, contextualiza a receita de alguma forma.
Tem um dos cadernos que é o mais usado. É um caderno pequeno, mas grosso, acho que de 150 folhas, capa dura encapada com tecido estampadinho que já foi trocado pelo menos umas três ou quatro vezes, pelo que me lembro. Recordo-me bem de quando ele foi começado, mas, na verdade, não sei se ele não era originalmente da minha irmã Cris. Fato é que ela havia sido incumbida de passar a limpo as receitas de outros dois cadernos mais antigos, isso me lembro bem.
Ao escrever sobre esses cadernos de cozinha, me veio à memória uma outra história, essa engraçada, que aconteceu com os cadernos de receita da dona Neuza, minha mãe. Certa vez, tendo meu irmão começado o curso de datilografia na dona Emília, minha mãe mandou que ele escrevesse à máquina todas as receitas de dois cadernos mais antigos dela. Como se uma lista de itens datilografada pudesse ser melhor que as receitas manuscritas, mas isso nem vem ao caso. Passado algum tempo, ela notou que o menino ia ticando cada página já copiada com um risco de cima abaixo. Feliz da vida foi verificar o trabalho já concluído. Surpresa foi que ele só tinha copiado os ingredientes das receitas, não se importando com as demais informações, nem sobre o preparo, nem quanto à origem, nem nada. Ou seja, ele tinha matado totalmente a tarefa, sem entender porque precisava de mais que os itens dos ingredientes. Minha mãe ficou furiosa! Porque, além de tudo, ele tinha rabiscado os cadernos originais.
Até hoje esses originais existem, bem gastos, folhas amareladas, mas perpétuos. Só mais uma prova de quanto esses cadernos fazem parte da família…
Os cadernos de receitas são fontes inestimáveis de pesquisa gastronômica. Até porque as comidas entram e saem de moda e a partir dessas joias raras de família algumas técnicas são relembradas, revistas e aprimoradas. Ingredientes que são sucesso estrondoso em determinada época ficam esquecidos em outra. Pesquisar em cadernos caseiros de receitas dá muita ideia para cozinheiros bem renomados, posso garantir.
Isso sem falar no prazer que encontramos nessa memória afetiva. Os cadernos de culinária da avó, da tia, da madrinha ou mesmo os feitos por nós mesmas têm histórias escondidas e muitas vezes nunca reveladas em suas páginas.
Quando me casei, ganhei um caderno de receitas da minha cunhada, Nicia. Um mimo que acompanhava uma panela wok e duas garoupas, como ela chamou as duas notas de 100 reais (já que nas notas de cem reais há o peixe desenhado) que nos deu para que gastássemos nalguma viagem que ela sabia que faríamos vez ou outra.
Esse caderninho lindo cuja capa era uma arte feita com papel reciclado artesanalmente, nos foi dado de presente com as duas primeiras páginas escritas: uma receita culinária de yakissoba e uma receita para ser feliz no casamento, cheia de carinho, com itens como: uma xícara de amor, duas de amizade, um punhado de paciência, uma pitada de sedução e por aí vai…
Tem coisa mais bonita nesse mundo? É muito amor embutido!
Cadernos de receita são como relíquias históricas a serem preservadas. Bom seria se a eles fosse dado o devido valor. Dá pra imaginar a cotação de uma peça como essa quando nela está a maravilhosa receita de fazer bolinho de chuva que a sua avozinha fazia quando a criançada se juntava na casa dela? Pra mim, valeriam mais aqueles cadernos mais gastos pelo uso, cujas folhas foram ficando velhas e respingadas de sabores eternos. Aqueles mais elegantes, possivelmente, valeriam pelo capricho. Há cadernos de receitas que são verdadeiras obras de arte gráfica, uma beleza mesmo. Letras desenhadas quase como bordados, muitas vezes, por tinta de tinteiro. Ô, coisa difícil de fazer!
Dia desses estava em Itu, na casa da mãe, e fui preparar uma pizza de arroz. A receita começava com as duas xícaras de arroz. De bate-pronto, peguei o ingrediente e pus no liquidificador. Dona Neuza veio brava e disse: – Não! Primeiro os ingredientes líquidos. Só que a receita começava com o arroz, oras… Pra mim, na lógica que aprendi na gastronomia, os ingredientes são apresentados na receita pela ordem em que vão sendo colocados no preparo. Do primeiro ao último. Mas não é assim em cadernos de cozinheiras! É a prática, o jeito de cada um é o que prevalece. Esse é o grande tesouro.
No caso da minha mãe, como seria diferente? Ela sabe tudo de cabeça, de cor. Quer a receita? Pode copiar. Quer aprender a fazer, converse com ela, acompanhe a execução, fique por perto, sinta o cheiro, verifique o modo como mexe a panela ou amassa o pão… Não se ensina, mas se aprende.
De resto, vale a sugestão de presentear alguém muito querido com um caderno de escrever receitas. Aí, aproveite e ponha logo a receita da tal pizza de arroz na primeira página. É de coração! Fica uma delícia e não há quem não goste. A massa é dada na receita, se seguir, dá certo, eu garanto! O recheio vai do gosto do freguês, então, você pode inventar, o que vale é se deixar levar pela criatividade e a memória do seu paladar.
Sugestões: queijos, cebolas, pimentões, salames, verduras, pimentões, hummmm. Ah! Que tal aliche?
Coisa boa de escrever criativamente é isso. Você pode derivar nas ideias, viajar pelas lembranças e falar de outros assuntos. Cabe tudo, desde que tenha afeto.
Receita de Pizza de Arroz
Ingredientes
2 xícaras (chá) de arroz cozido
2 ovos
1/2 xícara (chá) de óleo de girassol ou canola
1 xícara (chá) de leite
1 colher (chá) de fermento em pó
Modo de fazer
Bata todos os ingredientes no liquidificador. Despeje numa assadeira rasa untada e enfarinhada. Deixe assar por cerca de 20 minutos em forno pré-aquecido em 200 graus. Retire do forno, coloque o recheio de sua preferência e volte ao forno para finalizar com o recheio. Mais 5 minutos e está pronto.
Para harmonizar: que tal uma cerveja larger do estilo munich? Para quem só costuma “loiras geladas” juntar esse tipo de cerveja a essa refeição pode ser uma novidade interessante.
Aprecie!
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